quinta-feira, 13 de novembro de 2025

CRÔNICA - Comida (SQC)

 COMIDA
Sávio Queiroz Costa*

 

 

Por que gastar dinheiro naquilo
que não é pão, e o seu trabalho
árduo naquilo que não satisfaz?
Escutem, escutem-me, e comam o
que é bom, e a alma de vocês se
deliciará com a mais fina refeição.”
 
(Isaías 55:2 – NVI)

 

 

Vivemos em um mundo em que comer virou um ato de transgressão, quase revolucionário. 

Comer vem, gradativamente, deixando de ser um prazer, um restauro para o corpo e para a alma, um momento de deleite e elevação, transformando-se em uma ditadura. 

Estamos cercados por sucos e sopas “detox”, alimentos funcionais, suplementos alimentares, comida sem sal, livre de “gorduras trans”, sem aditivos ou conservantes, sem glúten, sem lactose, sem colesterol, sem açúcar, sem gosto e sem charme.

Na minha infância, comíamos de tudo – se duvidar, até a cal das paredes. Hoje, temos uma geração de alérgicos, intolerantes a um sem-número de “derivados” e com sérios distúrbios alimentares. 

Fonte: iStock - Credito: SongSpeckels

O homem pré-histórico era onívoro (esse comia mesmo de tudo). Hoje, penso que estamos a um passo de comer o Green Soylent, do clássico da ficção científica “No Mundo de 2020”, de 1973. No filme, estrelado por Charlton Heston, a população pobre de Nova Iorque consome apenas um tablete verde, produzido inicialmente com algas, mas que esconde uma verdade estarrecedora. 

Vivemos a ditadura do brócolis, onde vísceras foram banidas e, em breve, estaremos comendo escondido até uma pequena porção de torresmo. 

As comidas de mercado, notadamente as preparadas com vísceras, fazem parte de uma lista negra. O velho e bom sarapatel, a dobradinha, a buchada, a panelada, o sarrabulho — e até alguns dos mais famosos pratos da culinária francesa, como as Tripes à la mode de Caen e os Tournedos Rossini – integram a lista. 

Aliás, falar de Tournedos Rossini é quase um crime, já que a receita inclui peças de filé-mignon grelhadas, acompanhadas de uma generosa fatia de foie gras, também grelhado.

É que foie gras virou palavrão. A iguaria, resultante de uma cirrose alimentar induzida em patos ou gansos – por meio de um método milenar conhecido como gavage, em que os animais são forçados a se alimentar – é atacada por ecoterroristas e chegou a ser banida, por lei, dos restaurantes de algumas cidades. 

Tenho um certo estranhamento – poderia até dizer, preconceito – com a comida muito verde. É bonita, deve fazer bem, mas nunca me convidem para tomar um suco de couve ou comer uma salada de rúcula e endívias. Sempre acho que quem diz que come porque gosta, ou está mentindo, ou tentando se convencer. 

Por outro lado, sou fã incondicional de queijos – mas dos amarelos e duros. Aqueles com pequenos cristais de sal, curtidos e esquecidos por meses em cavernas escuras, para que revelem seu real sabor. Gosto dos “podres” também, azuis e verdes, com seu bolor característico. 

Mas o que “faz bem” são aqueles brancos e moles, como ricota ou cottage, tidos como os mais “magrinhos” dos queijos. Uma pasta insossa, branca e com um gosto similar ao papel. Abro uma exceção ao notável queijo português “Serra da Estrela”, feito com leite não pasteurizado de ovelhas e, por isso, perseguido pela vigilância sanitária brasileira. 

Níkos Kazantzákis, em seu magistral Zorba, o Grego, nos fala: 

Diz-me o que fazes do que comes e te direi quem és. Existe quem transforme isso em toucinho e em excrementos, outros em trabalho e bom humor; e outros, segundo já ouvi dizer, em Deus.” 

Sendo assim, continuarei minha saga por descobrir novos sabores, em busca do divino, da longa e prazerosa conversa à mesa com amigos – regada a bons pratos e bons vinhos.

terça-feira, 11 de novembro de 2025

CRÔNICA - Coisas de Minha Infância (PN)

COISAS DE
MINHA INFÂNCIA
Pierre Nadie*

  

Não sou coetâneo de Gonçalves Dias. Sou-lhe conterrâneo. No ventre do Maranhão, uma princesa pariu o sertão. E nesse pedaço de chão, Gonçalves Dias nasceu e eu fui concebido.

E foi para lá que, do Ceará, a seca catapultou minha família. Nasci aí e vivi um pedaço de minha meninice, da qual trago recordações indeléveis de tantos bons tempos. 


Ah! Como fora rica a minha tão curta e lesta meninice! Nossa linguagem era rica de uma cultura regional e nossos passatempos eram brincadeiras e jogos, uns nos legara a tradição e outros nós os engendramos. Nossa criatividade não tinha limites. Não havia Internet, nem tecnologia a nos dominar. Éramos livres e autores de nossos arranjos infantis. 

Hábitos, costumes e crenças guardávamos como tesouro de nossa vivência, e acompanhavam gerações numa estrada que parecia nunca ter encruzilhadas. 

Em nossas casas, sentávamos em cadeiras ou tamboretes, as comidas eram feitas em fogareiros ou trempes e os tições ou carvões eram mantidos acesos com o abano. Para o fogo pegar, um pouco de querosene ou maravalha, sobras de raspas de marcenarias e carpintarias. 

Facas e martelos eram produzidos por ferreiros, que liquefaziam metais com fornalha alimentada por seus foles. Nossas roupas eram lavadas nas águas do rio e a areia servia para limpar e lustrar copos e talheres. Pratos e vasilhas eram lavados em jiraus. Necessidades fisiológicas eram atendidas em sentinas e, à noite, tínhamos os urinóis perto de nossas redes. 

No café da manhã quase nunca havia pães, porém, a farinha de puba nunca faltava e era muito apetitosa. Tínhamos beijus, cuscuz de arroz e, às vezes, de milho.  

Não dispúnhamos de garrafa térmica, mas o bule trazia o café quentinho, “pegando fogo”, o suficiente para escaldar a farinha de puba, esgarçando seu sabor agridoce. 

Frutas eram colhidas, normalmente, nos quintais vizinhos ou no meio das ruas, ou na beira do rio. Muitas crendices pendiam de nossas mentes pueris: no escuro tem um bicho, uma alma; bolo quente dá dor de barriga, comer e tomar banho estupora; manga com leite faz mal, antes do banho tem-se de esfriar o corpo, comer banana de noite faz mal, etc. 

Tantas exortações, na verdade, hoje eu sei que tinham todas uma razão de ser, embora em sua maioria fossem mitos. Ou resguardavam de acidentes, ou disciplinavam a vontade, ou “protegiam” os acepipes de tamanho apetite infantil e diversos outros “ou”. 

O medo e o cuidado eram vividos como medo e cuidado, nunca como trauma. E, algumas vezes, conseguíamos driblar algumas recomendações movidas por receios e cautelas parentais.


ARTIGO - Pretenso Verdadeiro (AH)

 PRETENSO
VERDADEIRO
Assis Holanda*

 

 

A mentira é veloz, porém a verdade não tarda em alcançá-la (brocardo italiano: La bugie viaggiano veloci, ma la verità é veloce a raggiungerci). 

 


Quantas vezes nos expressamos como entendidos em determinados assuntos! 

Com vistas a opinar a respeito de qualquer tema, impõe-se que conheçamos, no íntimo, a matéria. Com frequência, entretanto, nos posicionamos acerca de certos conceitos, levados pela emoção e, não raro, por via da irresponsabilidade. 

A fim de que, porém, não expressemos asneiras, ou até disparates, é necessário pesquisar fatos, impende que nos debrucemos sobre provas concretas. 

Escutamos ou lemos falares e escritos vinculados à liberdade de expressão. Tal não significa, porém, que o locutor fale ou escriture tudo atinente a alguém, ao ponto de ferir o caráter da pessoa então sob comentário, sem oferecer provas. 

Isso, pois, é dizer bobices e proceder a inculpações, uma vez que o acusador se encontra movido por emoção e raiva, chegando a contraditar a verdade. Nas rodas de conversa, se alguém é cético e não comprova seus argumentos, inclui-se no rol daqueles que proferem ingenuidades desconexas, exprimem besteiras. 

Fonte: Wikipedia.

Segundo o filósofo estadunidense Harry Gordon Frankfurt (Langhorne-CA, 29.05.1929; Santa Mônica – Pens., 16.07.2023), professor emérito da Universidade de Princeton, “O mentiroso rejeita a autoridade da verdade”. De tal modo, é conhecida a verdade, indo-se, então, à demanda de razões comprobatórias do que se afirma. Por exemplo, alguém descrente em relação à existência de Deus – e que procura arrazoamento com o intento de comprovar seu ponto de vista – opõe-se à exatidão, denega a veracidade. 

Quando, por conseguinte, uma pessoa se dispõe a exprimir algo de que não tem conhecimento, sem hesitação, o ouvinte-leitor-consulente tem a certeza de que o dono do discurso está mentindo... 

E vem o pior: se o leitor é desprovido de boa leitura e interpretação correta das informações, é transportado a acreditar nas bobices e falsidades e debitar ao acusado todos os defeitos e inverdades aludidos pelo mentiroso. Enorme pecado!


domingo, 2 de novembro de 2025

CRÔNICA - A Bunda Verde (SQ)

A Bunda Verde
Sávio Queiroz*

A Praia do Futuro tem dessas coisas poéticas que a cidade insiste em fingir que não vê: sol, caranguejo e uma sucessão de milagres anatômicos caminhando pela areia como se fosse normal. 

Eu estava na barraca Dallas, templo sagrado do crustáceo maior, lugar que frequento há mais de 25 anos. Tempo suficiente para ver os filhos dos amigos crescerem, casais se formarem e terminarem, garçons mudarem ou morrerem – mas a cerveja continuar gelada. 

Foi então que surgiu ela. A morena. A de sempre, mas cada vez menos sempre – porque o tempo, esse editor cruel, gosta de cortar excessos e curvas com a sutileza de uma tesoura escolar. Ainda assim, ela mantinha aquele patrimônio traseiro tombado pelo Iphan da imaginação masculina.

Dessa vez, ela trazia um golden retriever. Um cachorro feliz, dourado e educado – o tipo que parece ter feito intercâmbio no Canadá.

A dupla passou pela nossa mesa. O cão abanou o rabo, ela abanou… bem, ela abanou também. Cada um com seu talento. E eu, que sempre gostei de cachorros, fiz o único comentário possível naquela situação:

– Lindo cachorro! 

Porque a civilização nos obriga a fingir foco. 

Mal a visão saiu do campo de visão – ou o campo saiu da visão, ainda estou decidindo – minha amiga Olga, aquela que Deus colocou no mundo só para nos lembrar de nossas pequenas misérias, disparou:

– Me diga: de que cor era a coleira do cachorro? 

Silêncio dramático. Um vento passou. Um amigo pigarreou. E eu descobri que, sim, o cérebro masculino tem espaço limitado para prioridades simultâneas.

Rimos. Da situação, de mim, do destino e, principalmente, da ciência que deveria estudar essas coisas com seriedade.

Mais tarde, a caminho do banheiro, passei novamente pelo fenômeno. A morena, o cão e a tal coleira. Verde. Um verde quase institucional. Verde que gritava: “obsessões têm consequências!”.

E foi assim que confirmei a máxima filosófica da Praia do Futuro: “Nem sempre é a bunda que é verde”. Mas, às vezes, é.


quinta-feira, 30 de outubro de 2025

RESENHA LITERÁRIA - Caligrafia Esmerada e Exposição Didática Primorosa (VM)

 Caligrafia Esmerada e Exposição Didática Primorosa

[Acerca de Sem Vontade de Voltar para Casa, de Gilda Freitas]

 Vianney Mesquita*



Os escritores superficiais, como as toupeiras, julgam frequentemente ser profundos, quando, no entanto, estão demasiado perto da superfície.

 

[Guilherme Shenstone, poeta. Halesowen – UK – 18 de novembro de 1714 – 11 de fevereiro de 176]



 

Em lance recente, ensaiei a dita de deparar a leitura de uma composição postulante a batismo, no Jordão editorial brasileiro, bem distinta, sob a óptica estrutural e no concernente ao jeito privativo de a esmerada escritora Gilda Freitas manifestar inspirações e enunciar desígnios.

Mencionada pretensão, depois de lapso breve, se configurou efetiva realidade, por via da certificação editorial do volume, quando remansa editada a obra, sob minha interpretação ligeira e, neste corredor, a modo de antecomeço, submissa às considerações ora aduzidas. 

Conquanto não me arvore de exegeta neste mister, representa ufania tamanha deitar uma conjunção de glosas, malgrado limitadas em consequência da míngua de conjuntura e espaço, acerca do bem originado do talento de uma demandista de alento, pouco habitual no concerto das produções coestaduanas, na senda dos variados móbeis entremeados nas seis artes ensaiadas, aqui disposto no âmbito da Literatura. 

Contabilizo na coluna do crédito, todavia, a conceição de que aludidas opiniões, quiçá por haverem negado luz à minha inábil lanterna, se achem até meio apartadas dos pontos imaginados onde estão circunscritas as preciosas ideias da autora, magnificamente exprimidas sob a umbela dinda e protetora da Língua Portuguesa. 

Procedo, contudo, à manifestação de um vexame configurado neste instante assaz crítico e desagradável pelo qual desliza o idioma camoniano, o qual não é recebido com a obrigatória deferência, muito menos dotado da justa e essencial atenção no concernente à sujeição às regras operadas pelos especialistas dos nove países lusofônicos, em particular Brasil e Portugal. 

Tal sucede, aquando, infelizmente, no curso desta quadra de travessia conturbada – seja isto reiterado – não se consagra ao mencionado sistema linguageiro de procedência latina a indispensável veneração, não sendo a esta codificação votado, sequer, o exigido respeito, sobrando encostado a uma circunstância de desarrimo, abeirando-se à desonradez e acostando-se a um malogro perto de se consumar, porém, que não vai de modo algum acontecer...! 

Na estação ora transitada, no Brasil, pelo Código Glossológico Lusitano, abraçado com determinação e rigor, desde instantes imemoriais, pelos escritores de alteado padrão, bem assim por parte de seus lentes, preceptores e adeptos – onde se entranha com propriedade a escritora sob comento – conforma-se real estado de descaso, conducente ao verossímil padecimento de quem o admira e obedece. 

Registra-se, então, a oportunidade na qual certas pessoas lhe desprezam os ditames, desobedecem ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa – o VOLP oficial, castigando e abandonando palavras e expressões vigorantes, assentes em razões linguísticas e históricas, no mesmo passo em que inventam outras sob incontáveis sem-razões, criticam os cânones e notações obrigatórios e investem numa má sorte infinda de procederes amplamente aversos às determinações corretas e oficiais. 

Distante aqui de não reconhecer sua positividade e lhe aceitar a alçada capacidade de acerto, lógica conferida pela realidade certificada pelo conhecimento parcialmente ordenado (a Ciência ao modo de Herbert Spencer), impende-me evidenciar, por oportuna e forçosa a conjunção, a magna e refalsada potência global da I.A. – inteligência artificial – ao juízo da maioria, como motriz a transportar respostas a quaisquer indagações e oferecer soluções para resolver enigmas de todos os gêneros, algo bem remoto de acontecer. 

Este engano é um artifício desonesto da banda de parcela dos comportamentos antrópicos, ao menos por enquanto, e nele somente se insertam algumas universidades, instituições de investigação e terrenos de prova, nomeadamente em teses de doutoramento, dissertações de mestrado e tarefas acadêmicas no estalão lato sensu, enjeitando, mesmo repudiando, a vigilância e a solicitude relativas às revelações da instrução nova, arrimada no conceito do saber natural. 

De efeito, “pseudoautores” e refalsados orientadores de agora largam as tarefas demandantes de conhecimento ao reboque da inteligência artificial, repelindo o incremento e a propagação do tino natural, acreditando, despropositadamente, no fato de “mente, “alma e “espírito desse formato de intelecção serem adequados ao transporte do entendimento renovado ao máximo de sua valoração, ao desfigurar por completo os saberes ingênitos procedentes das concepções hominídeas, conformados no entendimento racional.

Inumeráveis cabeçadas, ainda, são, para complemento destas notas, passíveis de ser trazidas a cotejo, porém não as comento, pois, decerto, iriam encompridar excessivamente a reflexão e, quem sabe, os consultantes a enjeitariam, eliminando a intenção, restando-me na expectativa de esta proceder, mesmo assim, sem disto guardar a certeza. 

Cumpre, todavia, celebrar esta verdadeira graça, configurada no caso de terem curso, insistentemente, produções e atitudes da agricultura de escritores e outros advogados da espécie avessos às posições há pouco desaprovadas, os quais exaltam os excepcionais haveres da Língua Nacional e logram salvá-la do descaso, imoderação e incongruências tão fora de propósito, mas em crescente espantoso. 

Na lista de combatentes pela grandeza, perfeição e continuidade de usança salutar da LP (bem sobrevinda é arte maior), salvante professores, gramáticos, imortais de sodalícios de literatura, língua lusitana, jornalismo e assemelhados, ajustam-se os inventariantes de volumes literários no âmbito de seus diversos expedientes, escriturando-se romances, poesias, contos, ensaios e outros esquadrinhamentos acadêmicos lato e stricto sensu, tratados e demais modalidades de enredo. 

Aí se insere a magnificamente dotada escritora Gilda Freitas, manufatora deste Sem vontade de voltar para casa, simpaticíssima conjunção de estâncias claras, alvura do cisne artístico a aplicar-se em concomitância a um exequível romance – ou conto, pois constitui narrativa ligeira e concisa – haja vista a mescla inteligente, culta e de estese amena do artefato, requisitos que lhe enroupam genericamente os cabedais, transpostos para seu já amplo e notório portefeuille. Aliás, com a sobeja capacidade intelectual por ela detida na feitura de engenhos escriturais, arbitra-se bem simples que transponha para qualquer molde da literatura o bem sob escólio, ora, por querer seu, no padrão de versos brancos. 

É descabido, no entanto, a fim de não subtrair do acólito ledor a ocasião de decodificar as expressões autorais, projetadas para ele, que eu adiante deduções, as quais, inclusivamente, instigado pelas insinuações, seriam suscetíveis de o conduzir a uma descodificação diametralmente diversa daquela por ele imaginada, ideia amplamente avessa àquilo tencionado pelas ideações de Gilda Freitas. 

Vai-se divisar, ao ser oferecida a peça aos consultantes, o desvelo de Gilda Freitas em relação ao seu exigente acompanhamento do estandarte que a “... brisa do Brasil beija e balança ...”  (Navio Negreiro – Castro Alves) conduzido linhas atrás. 

Tal ocorre porque ela patrocina, resolutamente, a correção linguística e moureja em prol da estilística, ao não repetir vocábulos nem expressões, e ainda rebate o emprego desazado de manias e chavões, os quais borram de vileza lingual o texto, menos em poemas do que noutros motivos literários. 

Impõe-se exprimir o fato de a escritora se desprover do exagero, na oportunidade em que lavra de tal modo, pois existe a licença poética, configurada na autonomia autoral de se afastar das normas da gramática para fins de estesia e expressão, achegando-se, exempli gratia, ao discurso do cotidiano, ocorrência indene de juízo crítico, acobertada pela expressa permissão inspiradora. 

Ela não faz acepção de palavras e dicções e emprega a magnificência do Português porque o consulente, passível de as não conhecer, é alcançado na qualidade de aprendente, obrigado a recepcionar positivamente aquilo exprimido pelo autor, por considerar o escrito literário mensagem produtora de cultura, dádiva de saber, estudo, instrução etc.

Constantemente, se reflete como a seguir. 

– De que adianta ler e escutar meramente o que já se sabe?  

De tal sorte, sob a circunstância crítica confessada em passagem anterior, Gilda Freitas se louva no bom discurso, vasto, fecundo e magisterial, como é apreciável no Sem vontade de voltar para casa, a fim de oferecer uma escrita deste quilate, a enobrecer, pela profusão de ideias vazadas em uma manifestação escorreita, opósita à exageração e recheada de tropos linguísticos magnificamente aplicados, para enricar sempre mais o caixa-forte da apurada reserva literária brasileira. 

Aprecie com detenção, estimado consulente, este desemparelhado produto editorial da exímia produtora literária Gilda Freitas, a qual, sobre se constituir escritora a mancheias, modela, também, uma componente da parede, refletida em passagem anterior, como obstáculo aos posicionamentos de invalidação e apoucamento axiológico do Código Linguístico Português, feita moto paredista. 

Sob o expresso movimento, animoso e resistente, com a maior determinação e segurança, tendo por compartes damas e cidadãos dotados de tanta grandeza, e com produção multíplice, retenho a convicção de que, desde o pódio, o espumante será repetidamente balançado e por todos os vãos esparzido. 

Fortaleza, outubro de 2025.


 

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

CRÔNICA - Uma Batalha Inusitada (MJ)

Uma batalha
inusitada
Maria Josefina*

 

Em uma manhã de início de primavera, após uma noite de chuva e temperatura amena, o sol brilha, e da mangueira, que abriga um condomínio de passarinhos, se ouve uma sinfonia de cantos distintos e harmônicos. 

São dezenas de pássaros vindos de todos os lados, em busca do abrigo na árvore e do alimento fácil que um vizinho do proprietário da mangueira, de nome Leinad, espalha em seu quintal. São farelos de milho e pedaços de frutas que fazem a festa da passarada. 

Diariamente, ao amanhecer e ao entardecer, o quintal se enche destes animados seres, em busca de abastecer a barriguinha. É um momento de deleite assistir, calmamente, a brincadeira de pousar e levantar voo em conjunto, comento e brincando entre si. 

É uma barulheira para quem não conhece a língua passarinhês, cada um com sua entonação e ritmos que se misturam, semelhante ao barulho de um shopping cheio de pessoas conversando. 

É nesse momento que aparece, andando solenemente sobre o muro da casa ao lado, um enorme sagui. Observa todos os lados, para, analisa o ambiente e segue calmamente até uma sacada contígua ao muro. 

De lá observa o quintal, a árvore, como que analisando as possibilidades. Vira-se e grita chamando o restante do bando na língua saguiêz: “Tá limpo. Vamos nessa!”. 

Da casa, no alpendre onde o café é servido, Fina observa o movimento dos saguis. Claro que ela não entende o que falam, mas, mesmo assim, faz sua interpretação dos diálogos. 

Cautelosamente, se aproxima o segundo, depois outro, e outro, um filhote e por fim outros dois, sendo o último um sagui do mesmo porte do primeiro. 

Dá para imaginar a forma de organização destes invasores: o líder, os jovens, o filhote protegido e, por fim, os adultos que garantem a retaguarda. 

Fina grita: “Venham ver! Uma família de sagui!” eram sete, ao todo. Todos da casa saem para ver a cena, e Cila corre para trazer pedaços de bananas e colocá-las sobre a mesa, onde as frutas são dispostas para os passarinhos. Diz ela animadamente: “Aqui, aqui, venham comer!

O sagui líder caminha vagarosamente até o topo do deck e se posiciona dentro da chaminé do forno, chamando, com gritos agudos, os demais.

 

Nesse momento Iram sai correndo e gritando para espantar os saguis: “Não deixe comida para estes pestinhas! Eles são folgados e agressivos. Morro de medo. Se eles se acostumarem, vão invadir a casa”. 

Ela sabe que eles não se limitarão ao quintal, como educadamente se mantêm os passarinhos. Recolhe algumas pedrinhas do quinta e começa a atirar na direção dos saguis, e emitir gritos para espantá-los. 

Rapidamente recolhe os pedaços de bananas colocadas na mesa, o que faz os saguis recuarem.

Eles ficam desnorteados por um instante, mas rapidamente se voltam na direção dos passarinhos, que até então estavam tranquilamente na mangueira. 

Alerta geral. Uma revoada de pássaros, uma correria de saguis na árvore, e se estabelece o campo de batalha. Os saguis tentando pegar os pássaros e estes se organizando para o enfrentamento. 

Rapidamente as rolinhas formam um cerco, sobrevoando em torno dos saguis, como que impedindo possível avanço dos invasores. 

Formaram a linha de defesa enquanto os bem-te-vis subiam e desciam tentando intimidar os saguis, mas sem resultado. Este continuam avançando em busca de caça, no caso, os pássaros. 

Estabelece-se a torcida na casa, todos em favor dos pássaros. Afinal, eles trazem beleza ao amanhecer e ao cair da noite, e já são habitantes de longas datas do espaço. 

De repente os bem-te-vis mudam a estratégia e passam a atacar frontalmente os saguis, exatamente como fazem quando entram em batalha com outros pássaros. Seus voos rasantes e rápidos são semelhantes a um caça em batalha aérea.

Estes movimentos surpreendentes levam os invasores a buscarem abrigo nas partes de baixo dos galhos e fogem para as pontas dos galhos, permitindo seus deslocamentos rápidos para galhos mais seguros. 

O filhote dos saguis foi atacado pelos outros pássaros presentes na batalha, como os João-de-barro, lutando para proteger seus ninhos. Entram na batalha galos capinas, canários, e até um saíra-sete-cores aparece, mais como expectador. 

Os pássaros, com seus piados variados estabelecem uma linguagem que parece ser compreendida por todos, com uma combinação dos movimentos de guerra.

Os saguis invasores, com seus gritos agudos, tentam espantar os inimigos que buscam atingir o filhote, encolhido em um galho mais protegido. 

Este balé bélico durou aproximadamente uns cinco minutos, até o grito do líder dos saguis ser ouvido por sobre a barulheira estabelecida, chamando para a retirada, rumo a uma gravioleira, cujos galhos formavam uma trama bem fechada, protegendo-os do ataque dos pássaros. 

Dalí, se evadiram usando o muro do outro lado da árvore, abandonando o campo de batalha e sumindo nas outras árvores do quintal do vizinho. 

Os bem-te-vis emitiram sons como que anunciando o fim do combate, acompanhado dos demais piados e bater de asas dos pássaros. Vitória sobre os invasores. 

Tudo voltou à normalidade, quando muitos dos pássaros desceram para bicar os farelos de milhos espalhados no quintal, e voando para longe, até o final da tarde, quando voltam para seu jantar diário. 

E assim, foi presenciado por uma plateia vibrante, uma batalha inusitada pela sobrevivência.

 

Praia do Jairy (Olivença-Ba). 28/09/2025