O peru quefaltou ao NatalSávio Queiroz Costa*
Na casa de minha avó – uma das mulheres mais espetaculares que conheci – a cozinha era comandada pela Maria, e peru de Natal não era exatamente um prato. Era uma instituição.
Começava a existir muito antes de dezembro, meio abstrato, meio promessa, e ia ganhando corpo, peso e importância, à medida que o ano se cansava de si mesmo.
Na época não se comprava peru gordo. O nosso peru se criava, a Maria engordava, abatia, tratava. Era uma ave com biografia.
Nós,
os netos, participávamos desse processo com o entusiasmo inconsequente de quem
ainda não compreende muito bem a relação entre afeto e sacrifício.
Íamos ao quintal observá-lo crescer, comentar suas formas, comparar seu tamanho com o do ano anterior – que, naturalmente, sempre fora maior, mais bonito e mais saboroso, segundo os adultos.
O peru engordava, como se tivesse consciência do seu destino glorioso. Recebia milho, restos de cozinha, frutas maduras demais para a fruteira – uma generosidade alimentar que hoje só se concede a animais de estimação.
Crescia firme, convicto, até começar a demonstrar sinais claros de que já não cabia em si. Chegou um momento em que o peru deixou de andar. Passou a se deslocar.
Arrastava as ancas pelo galinheiro com uma dignidade pesada, como um velho coronel aposentado, vítima da sua prosperidade. Observá-lo era, ao mesmo tempo, engraçado e um pouco constrangedor – como rir de alguém que já não consegue amarrar os próprios sapatos.
Dois ou três dias antes do Natal, o inesperado aconteceu: o peru faleceu. Assim, de repente. Sem aviso.
Houve silêncio no quintal. Depois, especulações. Concluiu-se, com a autoridade médica típica das famílias, que a causa mortis fora uma espécie de cirrose alimentar. Comeu demais, viveu demais, foi feliz demais. O peru morreu de excessos.
O problema é que morreu fora de época. E, sem ensaio geral, não se come o peru morto. Instalou-se, então, um drama doméstico. Natal sem peru era quase uma heresia, um erro teológico.
Minha avó, prática como só ela sabia ser quando a poesia falhava, resolveu a questão com um gesto moderno e definitivo: mandou comprar um peru de granja. Foi o primeiro peru de supermercado na história da família.
Veio embalado, limpo, pálido. Não tinha passado, não tinha galinheiro, não tinha nome. Não o vimos crescer, nunca lhe demos milho, nunca o julgamos gordo demais. Era um peru sem culpa, sem memória, sem passado.
Imagem: Maren Caruso/Getty Images |
Desde
então desconfio das soluções práticas demais. Elas resolvem o problema, mas
levam embora o assunto. E uma ceia sem assunto é apenas comida.
O
peru do quintal morreu cedo, é verdade. Mas deixou lembrança. O do supermercado
sobreviveu ao Natal – mas foi esquecido antes da sobremesa.

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