quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

CRÔNICA - O Peru Que Faltou ao Natal (SQC)

O peru que
faltou ao Natal
Sávio Queiroz Costa* 

Na casa de minha avó – uma das mulheres mais espetaculares que conheci – a cozinha era comandada pela Maria, e peru de Natal não era exatamente um prato. Era uma instituição. 

Começava a existir muito antes de dezembro, meio abstrato, meio promessa, e ia ganhando corpo, peso e importância, à medida que o ano se cansava de si mesmo.

Na época não se comprava peru gordo. O nosso peru se criava, a Maria engordava, abatia, tratava. Era uma ave com biografia. 

Nós, os netos, participávamos desse processo com o entusiasmo inconsequente de quem ainda não compreende muito bem a relação entre afeto e sacrifício.

Íamos ao quintal observá-lo crescer, comentar suas formas, comparar seu tamanho com o do ano anterior – que, naturalmente, sempre fora maior, mais bonito e mais saboroso, segundo os adultos. 

O peru engordava, como se tivesse consciência do seu destino glorioso. Recebia milho, restos de cozinha, frutas maduras demais para a fruteira – uma generosidade alimentar que hoje só se concede a animais de estimação. 

Crescia firme, convicto, até começar a demonstrar sinais claros de que já não cabia em si. Chegou um momento em que o peru deixou de andar. Passou a se deslocar. 

Arrastava as ancas pelo galinheiro com uma dignidade pesada, como um velho coronel aposentado, vítima da sua prosperidade. Observá-lo era, ao mesmo tempo, engraçado e um pouco constrangedor – como rir de alguém que já não consegue amarrar os próprios sapatos. 

Dois ou três dias antes do Natal, o inesperado aconteceu: o peru faleceu. Assim, de repente. Sem aviso. 

Houve silêncio no quintal. Depois, especulações. Concluiu-se, com a autoridade médica típica das famílias, que a causa mortis fora uma espécie de cirrose alimentar. Comeu demais, viveu demais, foi feliz demais. O peru morreu de excessos. 

O problema é que morreu fora de época. E, sem ensaio geral, não se come o peru morto. Instalou-se, então, um drama doméstico. Natal sem peru era quase uma heresia, um erro teológico. 

Minha avó, prática como só ela sabia ser quando a poesia falhava, resolveu a questão com um gesto moderno e definitivo: mandou comprar um peru de granja. Foi o primeiro peru de supermercado na história da família. 

Veio embalado, limpo, pálido. Não tinha passado, não tinha galinheiro, não tinha nome. Não o vimos crescer, nunca lhe demos milho, nunca o julgamos gordo demais. Era um peru sem culpa, sem memória, sem passado.


Imagem: Maren Caruso/Getty Images

Foi à mesa, cumpriu sua função, serviu a todos, nos  alimentou. Mas algo estava errado. Comia-se, mastigava-se, elogiava-se por educação – e sentia-se falta de alguma coisa que não estava exatamente no tempero. Faltava a história. 

Desde então desconfio das soluções práticas demais. Elas resolvem o problema, mas levam embora o assunto. E uma ceia sem assunto é apenas comida.

O peru do quintal morreu cedo, é verdade. Mas deixou lembrança. O do supermercado sobreviveu ao Natal – mas foi esquecido antes da sobremesa.


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