quinta-feira, 13 de novembro de 2025

CRÔNICA - Comida (SQC)

 COMIDA
Sávio Queiroz Costa*

 

 

Por que gastar dinheiro naquilo
que não é pão, e o seu trabalho
árduo naquilo que não satisfaz?
Escutem, escutem-me, e comam o
que é bom, e a alma de vocês se
deliciará com a mais fina refeição.”
 
(Isaías 55:2 – NVI)

 

 

Vivemos em um mundo em que comer virou um ato de transgressão, quase revolucionário. 

Comer vem, gradativamente, deixando de ser um prazer, um restauro para o corpo e para a alma, um momento de deleite e elevação, transformando-se em uma ditadura. 

Estamos cercados por sucos e sopas “detox”, alimentos funcionais, suplementos alimentares, comida sem sal, livre de “gorduras trans”, sem aditivos ou conservantes, sem glúten, sem lactose, sem colesterol, sem açúcar, sem gosto e sem charme.

Na minha infância, comíamos de tudo – se duvidar, até a cal das paredes. Hoje, temos uma geração de alérgicos, intolerantes a um sem-número de “derivados” e com sérios distúrbios alimentares. 

Fonte: iStock - Credito: SongSpeckels

O homem pré-histórico era onívoro (esse comia mesmo de tudo). Hoje, penso que estamos a um passo de comer o Green Soylent, do clássico da ficção científica “No Mundo de 2020”, de 1973. No filme, estrelado por Charlton Heston, a população pobre de Nova Iorque consome apenas um tablete verde, produzido inicialmente com algas, mas que esconde uma verdade estarrecedora. 

Vivemos a ditadura do brócolis, onde vísceras foram banidas e, em breve, estaremos comendo escondido até uma pequena porção de torresmo. 

As comidas de mercado, notadamente as preparadas com vísceras, fazem parte de uma lista negra. O velho e bom sarapatel, a dobradinha, a buchada, a panelada, o sarrabulho — e até alguns dos mais famosos pratos da culinária francesa, como as Tripes à la mode de Caen e os Tournedos Rossini – integram a lista. 

Aliás, falar de Tournedos Rossini é quase um crime, já que a receita inclui peças de filé-mignon grelhadas, acompanhadas de uma generosa fatia de foie gras, também grelhado.

É que foie gras virou palavrão. A iguaria, resultante de uma cirrose alimentar induzida em patos ou gansos – por meio de um método milenar conhecido como gavage, em que os animais são forçados a se alimentar – é atacada por ecoterroristas e chegou a ser banida, por lei, dos restaurantes de algumas cidades. 

Tenho um certo estranhamento – poderia até dizer, preconceito – com a comida muito verde. É bonita, deve fazer bem, mas nunca me convidem para tomar um suco de couve ou comer uma salada de rúcula e endívias. Sempre acho que quem diz que come porque gosta, ou está mentindo, ou tentando se convencer. 

Por outro lado, sou fã incondicional de queijos – mas dos amarelos e duros. Aqueles com pequenos cristais de sal, curtidos e esquecidos por meses em cavernas escuras, para que revelem seu real sabor. Gosto dos “podres” também, azuis e verdes, com seu bolor característico. 

Mas o que “faz bem” são aqueles brancos e moles, como ricota ou cottage, tidos como os mais “magrinhos” dos queijos. Uma pasta insossa, branca e com um gosto similar ao papel. Abro uma exceção ao notável queijo português “Serra da Estrela”, feito com leite não pasteurizado de ovelhas e, por isso, perseguido pela vigilância sanitária brasileira. 

Níkos Kazantzákis, em seu magistral Zorba, o Grego, nos fala: 

Diz-me o que fazes do que comes e te direi quem és. Existe quem transforme isso em toucinho e em excrementos, outros em trabalho e bom humor; e outros, segundo já ouvi dizer, em Deus.” 

Sendo assim, continuarei minha saga por descobrir novos sabores, em busca do divino, da longa e prazerosa conversa à mesa com amigos – regada a bons pratos e bons vinhos.

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