terça-feira, 8 de abril de 2025

LIVRO - Passeio Onírico (RV)

PASSEIO ONÍRICO
Reginaldo Vasconcelos* 


Visitas guiadas a museus e passeios ilustrados por guias profissionais competentes são práticas corriqueiras em excursões pedagógicas e em viagens de cunho cultural aos sítios históricos pelo mundo. 

Também se tem disponíveis hoje em dia interessantes reportagens em vídeo, de cunho geográfico e tutorial, perlustrando e dissecando pontos turístico do planeta, de modo que até se torna despiciendo sair de casa para percorrer e conhecer esses roteiros.

Porém um livro em que o escritor de prosa rica e saborosa vai caminhando por calçadas da Itália e descrevendo, não somente o que vê de beleza na colossal arquitetura histórica que defronta, mas também a ambiência lírica dos espaços que percorre, e a emoção anímica que lhe assoma ao intelecto de humanista refinado, é de fato uma relíquia literária.

Foi essa a obra profundamente sinestésica que o poeta diplomata Márcio Catunda acaba de lançar – “Sinfonia Italiana – Uma História da Arte na Itália” – e dela enviou um precioso exemplar à Academia Cearense de Literatura e Jornalismo, da qual ele faz parte, com carinhosa dedicatória ao presidente. 

Editado pela Ventura Editora do Rio de Janeiro, em volume de 302 páginas, a capa em verniz e altos-relevos – criada por Ernani Cortat, montada por Tchello d’Barros e realçada por Lucília Dowslley, o livro é uma verdadeira obra de arte em sua primorosa feição gráfica.
 

Nem precisava de abonações tão abalizadas, mas “Sinfonia Italiana” ainda recebe chancelas do poeta Luciano Maia e do Professor Vianney Mesquita, mais dois grandes paredros literários da ACLJ, que o recomendam nas abas da capa e na sua contracapa.  

Resta parabenizar o nosso confrade Márcio Catunda pelo trabalho magnífico, e agradecer pela gentileza do envio, exemplar que terá espaço de honra na estante quando e se, exaurido o conteúdo, me sair da cabeceira.

      

segunda-feira, 7 de abril de 2025

SONETO EM RIMAS E LÍNGUA-PROSA - Bateu Saudade! (VM)

 BATEU SAUDADE!
Vianney Mesquita*
(Jovem Krhónos)

 

(Para os árcades novos Virgínia Tétis, Otávio Zeus e Iolanda Athena – Maria Virgínia Pinheiro Campos, José Hermínio Muniz e Iolanda Campelo de Andrade Sampaio).

 

É sombria a saudade na velhice, porque as esperanças já são muito débeis para lhe darem luz.

 

[JÚLIO DINIS, pseudônimo de Joaquim Guilherme Nunes Coelho, médico, escritor e professor português]. (Porto, 14.11.1839; 12.12.1871). 

A História em Língua-Prosa

O extraordinário - e quase menino - poeta Júlio Dinis, o qual viveu apenas 32 anos, mesmo assim, reporta-se à saudade na velhice, como se a houvesse experimentado, e, com insofismável verdade, vincula as recordações na qualidade de precárias a fim de que tenham sentido.

Aqui, bem que eu seria propício a conceder razão ao poeta satírico e religioso irlandês Jonathan Swift (1667-1745), para quem, [...] sendo mentirosos profissionais, os poetas devem ter excelente memória. Assim não procedo, haja vista o fato de que ele, também, era poeta. E, de minha vez, não me arvoro de tal atributo, conquanto já tenha contabilizado quase duas vezes e meia a quadra temporal experimentada pelo Vate Portuense.       

Neste passo, no fazimento deste soneto decassílabo português, evidentemente, são passíveis de revelação, por ser curta a dimensão de produtos literários dessa natureza, somente algumas passagens, as mais importantes acumuladas na minha retentiva, em tempo já tão pretérito – os anos mil e novecentos e cinquenta.       

Daí por que confesso as mal aparatadas linhas, insertas no íntimo do coração, como graças, mercês e provimento no âmbito da boa história, quando eu era miúdo na também minguada Palmácia do mencionado e recuado período – porção a englobar o primeiro quarteto. 

Na quadra sequente, faço menção aos leilões da Festa de São Francisco, cujo termo era o dia 4 de outubro, dia do Santo Assisense, contando com muitas prendas, sendo, porém, as mais destacadas as cervejas – nesse tempo, esfriadas nos pés dos potes, raramente em geladeiras – e as galinhas assadas, recolhidas como doações por pessoas em comissão em toda a comunidade palmaciana. 

Havia as “pescarias”, com anzóis sacadores de ganchos enterrados com o papelzinho onde estava escrito o mimo a ser recebido pelo “pescador”. 

Pertinho, ficava a ola do “Zé Bia”, onde se rolava, cadeira acima e abaixo, o que assegurava a fixação de assaduras, intertrigens que doíam por semanas, até descascarem por completo, na retaguarda dos meninos e meninas. Aliás, estas pouco rodavam de ola..., mas frequentavam a banca da Dona Rita Pinheiro, servidas pelo Dezinho. Quem se lembra? 

Era satisfação imensa, muito amanho, verdadeira arrumação... 

Reminiscência viva, nítida, vem da entrega do almoço dos trabalhadores do roçado. Nalgumas ocasiões, fui deixar essa refeição, num só recipiente para dois, três, até cinco operários, dentro de um alguidar, composto por feijão, arroz (ou baião-de-dois), farinha e jerimum. A chamada “mistura”, quase sempre, descansava no torresmo, decerto, o mais valioso! ... Não tinha carne. A sobremesa – esta, sim, era vasta, composta de rapadura. 

Aqui fica fechado o primeiro terço do poema. 

Quando menino, eu acompanhava os padres da Paróquia de Palmácia, montado em burros choutões (o cavalo bralhador era para o sacerdote – é claro!). Era andar muito devagar, galope ou chouto, a fim de acompanhar o vigário e seu guia, até a capela (Gado dos Ferros, Canadá, Tanques e Jubaia). Isto significava a hospedagem de chagas purulentas, por nós chamadas “tapiocas”, as quais, depois de secas, mais doíam e chamavam febres elevadas dignas de atenção dos pais, que, muitas vezes, por terem muitos filhos de quem cuidar, nem tomavam conhecimento do caso... Lá em casa eram (aliás, ainda são) somente doze...      

Em adição às assaduras, ocorriam os chamados tenesmos, espasmos esfinctéricos, com vontade de expelir fez ou urina. Quando se conseguia fazer qualquer dessas manobras, era uma circunstância dolorosíssima.

Eis, pois, o fecho dessa medida em Arte Maior agora levada a efeito: eu parava a fim de evacuar, depositava o pesado bacio no chão e, empós a lastimosa operação, embora sem muita fome (pois cortava e chupava cana de quem quer que fosse, no caminho), desamarrava os panos do alguidar e subtraía alguns componentes da “mistura” – os torresmos – como se fosse uma paga justa pelos serviços prestados. 

Eximia mnemosyne!

Ótima recordação!


Bateu Saudade!

Movem-se aí desengonçadas linhas,
No imo cardial onde as apanho,
Gratas recordações das graças minhas
Quando menino, em meu lugar de antanho.
 
Os leilões, com cervejas e galinhas,
Das franciscanas festas, feliz ganho,
Palmacianas “pescarias”, bem vizinhas
Da ola do Zé Bias... Quanto amanho!
 
Lembro-me bem do almoço, dos manjares
Que no roçado ia deixar – eu mesmo –
Levando na cabeça os alguidares.
 
Muita vez, sob fome e com tenesmo,
Parava em razão dos mal-estares
E da bacia roubava torresmo.



domingo, 6 de abril de 2025

NOTA ACADÊMICA - Reunião na Tenda Árabe (05.04.2025)

REUNIÃO 
NA 
TENDA ÁRABE

Parte do dito "núcleo duro" da ACLJ reuniu-se neste 05 de abril, ao meio dia, para a feijoada de sábado, em que se compartilharam visões de mundo filosoficamente analisadas,  se recitaram poemas, se leu prosa poética, se ofereceram livros, e, principalmente, foi apresentada e discutida pauta prevista para a Assembleia Geral Aniversária da ACLJ do próximo dia 03 de maio, em que serão comemorados os 15 anos contados deste a concepção da Confraria.




Compareceram os confrades Altino Farias, César Barreto, George Tabatinga, Humberto Ellery, Pierre Nadie, Reginaldo Vasconcelos, Roberto Bomfim (com a consorte Renata Nogueira), e Vicente Alencar.

Como  convidado especial, esteve na reunião o poeta Edmilson Providência, da Academia Crateuense de Letras, trazido pelo acadêmico César Barreto.    

ARTIGO - Saudade da Lucidz - Parte 4 (RMR)

 SAUDADES DA LUCIDEZ
Parte 4
 
Rui Martinho Rodrigues*

 

A opinião e o conhecimento válido

Ter opinião é um direito universal. Todos temos e podemos ter opinião, além de podermos expressar e defender nossas elucubrações. Elas não devem ser criminalizadas, sob pena de perdermos a liberdade de consciência. Sucede, todavia, que opiniões são formas puramente subjetivas de apreensão da realidade, independentes dos métodos de validação do conhecimento. São adequadas quando se trate de apreciação predominantemente subjetiva, como dito, quando concernentes a juízo de valor, a exemplo da apreciação da beleza e até no campo das virtudes, mas perdem validade quanto aos de juízos de realidade, de fato ou de existência.

Tales de Mileto (624 a.C. – 546 a.C.) propôs um caminho para o conhecimento válido: a superação da opinião pela crítica. Karl R. Popper (1902 – 1994) dizia que a ciência cresce corrigindo erros. A chamada polarização foi produzida por pretensos demiurgos que querem criar uma nova sociedade como instrumento para produzir um novo homem, substituindo o homem atual, criticando tudo: costumes, organização do Estado, sociedade, economia, crenças e família. Só não admite a crítica de suas teses. Não são conhecimentos válidos, mas opiniões de uma História movida a conflito.

A repulsa à correção e à crítica tem muitas causas. A confusão entre crítica e ataque, agressão, desconsideração e falta de educação; a vaidade de quem supervaloriza suas opiniões; o pensamento segundo o qual errar é desonroso; a conveniência própria do manipulador são algumas dessas causas. Machado de Assis (1839 – 1908), no conto Teoria do medalhão, coloca na boca de um pai, ao orientar o filho no caminho do alpinismo social, o conselho de que fale somente generalidades e platitudes. Assim evitaria o desconforto social. O conto sugere que o dito desconforto é filho da confusão entre contribuição crítica e ataque. E é conveniente. 

Um alemão, professor visitante em uma universidade brasileira, era considerado grosseiro por afirmar sem rodeios que alguma coisa estava errada. Certa vez o tedesco desabafou: havia lido muitas revistas de uma universidade brasileira onde atuava, sem encontrar um só artigo criticando a produção intelectual de um colega. Mas ouvia críticas em conversas particulares. A crítica dirigida diretamente ao colega seria uma contribuição, pois ainda que equivocada daria ensejo a defesa. Quando formulada pelas costas, porém, não passa de maledicência do Macunaíma de Mário de Andrade (1893 – 1945). 

O estrangeiro estava certo. O Macunaíma acha falta de educação o desacordo, mas é maledicente. Reis, nas monarquias parlamentares, adotam o modelo do conto Teoria do medalhão. Evitam comprometer o trono com ideias que possam produzir impacto político. Não deveria ser o caso do irreverente Macunaíma, cujo silêncio obsequioso se relaciona mais com as práticas do estamento burocrático do patrimonialismo descrito por Raymundo Faoro (1925 – 2003), na obra Os donos do poder, cuja base estamental tem, nas relações pessoais lubrificadas pela cumplicidade, sob a camuflagem de lealdade, um dos seus fundamentos.

As relações do estamento burocrático são a base do poder no sistema patrimonialista, criando lealdades entre os que se apropriam dos bens públicos, na forma de silêncio conivente ou de cumplicidade. Todos os brasileiros teriam sido contaminados com as práticas do estamento aludido. Sim, as elites influenciam toda a sociedade. 

Bastou que as tecnologias digitais dessem voz ao povo, quebrando o pacto de silêncio conivente – ou até cúmplice – para que a sociedade se tornasse conflagrada. Agora muitos deploram a morte da figura polêmica do “homem cordial”, de Sérgio Buarque de Holanda (1902 – 1982), na obra Raízes do Brasil. Outros países, sem a herança de resíduos patrimonialistas também estão conflagrados. Sim, é verdade. Cada   aso demanda uma análise específica. 

O que há de novo na polarização generalizada das sociedades 

Os paradigmas sempre foram incomunicáveis. A falta de comunicação entre eles sempre ensejou perseguições e conflitos. A lucidez sempre teve limitações. Então o que há de novo e do que ter saudades? Sim, nada há de novo sob o sol, Salomão advertiu, em Eclesiastes 1;9. Mas a longa duração não exclui a diacronia. A incomunicabilidade dos paradigmas, entre estudiosos da ciência, como os físicos, tende a sofrer o impacto do que Gaston Bachelard (1884 – 1962) descreveu como obstáculo    epistemológico. Isso levou Max Planck (1858 – 1947) a dizer que a Física só avança quando morre uma geração de físicos. 

Filósofos e principalmente ideólogos sofrem ainda mais fortemente a imunização cognitiva decorrente da cegueira dos paradigmas. A incomunicabilidade e os conflitos ficavam circunscritos aos formados pelos estudiosos das áreas citadas. A população em geral, não sendo impregnada por teorias, não sofre o fenômeno descrito na obra de Luís Gusmão O Fetichismo do Conceito, que interpõe entre o sujeito cognoscente e a realidade. Pessoas comuns eram mais abertas e mais tolerantes do que os estudiosos e militantes porque estavam fora do alcance da vacina de realidade (Thomas Kuhn), livres dos obstáculos epistemológicos (Gaston Bachelard) e do fetichismo do conceito (Luís Gusmão). 

O acesso à informação e o contraditório: esta é resposta ao questionamento sobre qual é a novidade em matéria da polarização. Foi uma abertura permitida pelas tão difamadas redes sociais, que romperam o controle da imprensa comprometida com anúncios, principalmente os dos governos que pagam regiamente e por diferentes meios. 

A tecnologia da informação rompeu o oligopólio de poucas famílias donas de grandes jornais e emissoras de televisão e rádio; superou o monopólio do chamado “lugar de fala” das universidades e escolas, onde doutores nem sempre doutos, com títulos obtidos sob estrita a vigilância corporativa, ideológica e influenciada por relações pessoais, controlavam informações e ideias nem sempre discretamente. 

Não temos notícia de polarização da sociedade na Coreia do Norte e em tantos outros países, mas isso não nos causa admiração por eles. É preferível substituir o controle da censura pelo controle da comunidade exercido graças a liberdade de crítica.

Mentiras, desinformação e o velho conhecido chamado boato são inevitáveis. A censura e as chamadas “agencias de verificação” tem preferências conforme a fonte das inverdades, falácias e sofismas, conforme o interesse argentário, a conveniência do Poder ou da ideologia.

 

CRÔNICA - Acertou o Passado (AG)

 ACERTOU O PASSADO
Aluísio Gurgel*

 

Ele me contou que a primeira vez em que operou na bolsa de valores foi no começo de março de 2023. No dia 3, a corretora o liberou para usar o aplicativo e lá foi ele, crente que ia ganhar dinheiro. Por afeição à aviação desde menino, resolveu olhar o papel da Gol Linhas Aéreas Inteligentes S.A. 

O “ticker” dela é GOLL4 e então o papel era negociado a R$ 5,12. Mudou a tela do aplicativo para conferir o gráfico de 5 anos até aqui e constatou que este era o preço mais baixo desde 22 de julho de 2019. Inexplicavelmente, foi como se ouvisse uma grave e profunda voz lhe aconselhar: “Compre!” Não teve dúvida, adquiriu 20.000 ações a mercado.

Alguém se impressionará com o valor de R$   102.400,00 que representou a operação. Passou o dia seguinte feliz, agora era investidor. Domingo foi dia de praia e de cerveja, nada de pensar em negócios. Na segunda ficou receoso de não haver comprado bem. Na terça recebeu pesada crítica da noiva, sugerindo gastar com o casamento. Na quarta foi a vez dos amigos, advertindo acerca da perda fácil na bolsa. 

Na quinta ele se convenceu, iria vender as ações. Na sexta, 10 de março, abriu o aplicativo para conferir e a ação estava cotada a R$ 8,31. Na mesma hora ouviu a voz aconselhar: “Venda, cumpra o que decidiu!”. Uma vez mais não teve dúvida, imediatamente vendeu a mercado. 

Depois parou um pouco, sentou no banco da praça e refletiu sobre o fato de que em 6 dias úteis realizou um lucro líquido de R$ 51.040,00. Tanto é que nem se deu conta de haver sentado ao lado de uma simpática senhora que lhe propôs: quer que eu leia a sua sorte? E abriu as cartas em leque e prosseguiu: “Você vai ganhar um bom dinheiro com um negócio a respeito do qual não entende nada, acredita?”.


ARTIGO - Saudades de Lucidez - Parte 3 (RMR)

 SAUDADES DA LUCIDEZ
Parte 3

Rui Martinho Rodrigues* 


O método de dominação das consciências A manipulação semântica é tática de dominação das consciências. Ressignificação sob medida das palavras para fomentar conflitos é exemplo disso. O mundo inteiro se transformou em campo de batalha. Atribuir a reflexos de situações injustas e opressivas dos contextos sociais, ressaltados por Labov, como criação especialmente destinada a acicatar grupos identitários uns contra os outros é teoria conspiratória do processo evolutivo das línguas. É o caso de palavras que podem indicar o gênero masculino ou neutro, apresentadas como forma de desprezar a mulher. 

Apresentar sentimentos inferiores como se fossem virtudes é uma tática de manipulação das consciências. A inveja pode ser apresentada como justa indignação em face da desigualdade social. A substituição de palavras é um complemento da manobra de ressignificação.  Desigualdade deve designar apenas a diferença injusta, conforme explica José D’Assunção Barros (1957 – vivo), na obra Igualdade e diferença. Dizer que a discrepância entre a renda de um jogador de futebol regiamente remunerado e a de um professor cheio de títulos acadêmicos é uma “desigualdade” é o mesmo que afirmar que tal desnível é injusto.

O jogador e o professor atendem demandas que não podem ser comparadas, a fonte pagadora de cada um deles também é diferente. O caso não é de desigualdade, mas simples diferença. A aparente revolta com a “desigualdade” encontra terreno fértil na falta de informação sobre a liberdade dos agentes econômicos que remuneram o jogador e a natureza da fonte pagadora do professor. Trata-se, ainda, de uma autoproclamação de “virtudes” de quem se revolta contra a “injustiça”. Pode também servir de biombo para esconder a inveja, como pode refletir a falta de compreensão da complexidade que envolve o objeto da discussão. Pode, ainda, ser – e muitas é – um sofisma elaborado conscientemente para manipular desinformando. 

Necessidades não são sinônimos de direitos Proclamar direitos é outra forma de exibição de “virtude” e de “legítima” e “corajosa” reivindicação. Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), na obra A Política, ao discorrer sobre o espírito dos regimes políticos e a forma degradada de cada um deles, diz, a respeito da democracia, que o espírito desta é a virtude, porque os agentes públicos devem servir desinteressadamente à nação. 

Quanto à forma decadente do regime republicano, o Estagirita a descreve como demagogia. Acrescentemos: ainda que sob a aparência de doutrinas sofisticas.   Confundir necessidades com direitos dotados de exigibilidade contra terceiros; reivindicar direitos potestativos como se fossem direitos subjetivos (dotados de exigibilidade) são formas da democracia decadente aludida por Aristóteles como demagogia.

Todos nós temos necessidade de uma companhia, que também é um justo direito, mas do tipo potestativo, que não pode ser proibido, obstado ou dificultado. Mas ninguém pode alegar tal direito para exigir de alguém lhe faça companhia. Alegar necessidades e direitos potestativos, ainda que em elegante embalagem, é demagogia e é técnica de manipulação das massas.


sexta-feira, 4 de abril de 2025

CRÔNICA - Padre Pedro (AG)

 PADRE PEDRO
Aluísio Gurgel*

 

Ele era vigário de Brejo Santo. Velhinho e bondoso, praticamente vendeu todo o acervo da diocese para manter a sopa dos pobres. Quando a comunidade se deu conta, saiu em socorro da reconstrução. A igreja ficou um brinco. 

Padre Pedro se entusiasmou e passou a rezar missa aos gritos, devido ao adiantado estado de surdez em que se encontrava. Não satisfeito, resolveu tomar confissão dos fiéis. Foi aí que aconteceu de um homem confessar traição matrimonial. 

“O quê, meu filho? Fale mais alto que Padre Pedro é mouco.” E ele, aos gritos: “Padre Pedro, eu trai o matrimônio!” E Padre Pedro: “Seu cabra sem vergonha, vá ali no altar rezar dez Ave Marias e um Padre Nosso!”. Ao que o homem redarguiu: “mas Padre Pedro, a menina bem novinha, chegou e sentou no meu colo… Se fosse com o senhor, o que o senhor faria?” E Padre Pedro arrematou: “esta felicidade não é para Padre Pedro não, meu filho. Pode ir cumprir sua penitência!”

quinta-feira, 3 de abril de 2025

ARTIGO - Bem Escrever: Ato de Resistência (IG)

 Bem escrever:
ato de resistência
Ítalo Gurgel*

 

O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, edição digital 2024-2025, registra mais de 380 mil entradas. Com especial atenção à vertente brasileira, esse sistema é continuamente atualizado, numa prova de que os olhos e ouvidos da Academia Brasileira de Letras continuam abertos, sensíveis “aos apelos e às vozes de nossa língua”, como assinala Marco Lucchesi, Ex-Presidente da ABL, na apresentação da sexta edição digital do riquíssimo inventário.

Com vasto vocabulário, copiosas variações semânticas e uma estrutura gramatical complexa, a Última Flor do Lácio nos concede a oportunidade de expressar ideias com precisão e profundidade. Guiado por esse maná, resulta gratificante explorar as étagères da produção de Vianney Mesquita, um autor atento ao imenso potencial da nossa canora língua, em boa hora introduzida pelos colonizadores lusitanos nestes rincões tropicais. Mesquita não descuida dessa fortuna e, em tudo o que escreve, imprime a marca de seu profundo conhecimento do idioma e invejável cacife vocabular, que lhe enseja transmitir ideias concretas, subjetividade e a mais variada escala de emoções e conceitos, tudo com uma elegância e apuro formal que deixam marcado primoroso estilo, seja em verso, seja em prosa.

Afago, neste momento, um exemplar da mais recente pérola literária de Vianney Mesquita. Reservas de Minha Étagère recolhe ensaios que o autor produziu com procedência em leituras seletas, em que percorreu as páginas de mestres distinguidos por títulos universitários e por uma faina científica e literária das mais respeitáveis. São “adendos” de variadas áreas do conhecimento que se constituem numa autêntica antologia pela excelência do trabalho crítico de Vianney e pela luz que irradia com base nos autores analisados.

Impossível não citar aqui o Prof. Dr. Rui Martinho Rodrigues, intelectual com larga vivência nas áreas de Educação, História Oral e Memória, que, em magistral “Antecomeço”, aponta: 

É motivo de júbilo encontrar uma conjunção de escritos e, mais do que isso, um autor que preza o idioma pátrio, tratando com respeito o léxico e a sintaxe e que, escudado em vasta erudição, incursiona pelas sendas do Direito, da Literatura, das Ciências da Saúde e da Natureza, submetendo-as a reflexões filosóficas, sociológicas e antropológicas. Um verdadeiro polímata (p. 20).           

Membro da Academia Cearense da Língua Portuguesa, da Arcádia Nova Palmaciana e da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo, Vianney Mesquita multiplica, em todos esses cenários, provas de seu compromisso com a Língua de Camões, de Machado e Drummond, patrimônio que prometeu defender e honrar em cada ensaio, em cada página, em cada estrofe que emerja de sua oficina criativa. Com 24 livros publicados, o Escritor, Jornalista e Professor tem a dimensão de que a palavra existe para ser prolatada e escrita; quando necessário, para ser resgatada dos baús da memória linguística, a fim de que, uma vez polida, posta a brilhar, seja novamente colocada em uso, expondo todas as virtualidades do mais doce rebento do Lácio. 

Ao laborar nesse filão, Vianney Mesquita explora uma riqueza vocabular que, à maioria dos escribas, permanece velada e inútil, em pudico resguardo. Tem ele a consciência de que lhe cabe valorizar a herança linguística, dado que o idioma pátrio, como veículo de expressão, carrega consigo não apenas significados, mas também a essência de um povo, suas tradições e modos de pensar. Explorando a vastidão lexical do Português, Vianney sabe que não apenas enriquece sua obra, mas também contribui para a preservação de um patrimônio linguístico que, de outro modo, se perderia na estandardização globalizada. 

O uso de um vocábulo – quase sempre único e preciso – concede ao operário das Letras o lance de transmitir nuances e sutilezas que são intrínsecas à experiência humana. É por esse caminho que a riqueza lexical propicia maior capacidade de evocação e imaginação, fazendo com que o leitor se conecte de maneira mais profunda com as ideias, as emoções e os cenários que deslizam sob seus olhos. Assim, o resgate do vocabulário nativo não se limita a um exercício estético, mas se configura como um verdadeiro ato de resistência e afirmação cultural.

 

*Ítalo Gurgel é jornalista, professor da Universidade Federal do Ceará, escritor e poeta, imortal da Academia Cearense da Língua Portuguesa. Mestre na área de Letras.

sexta-feira, 28 de março de 2025

CRÔNICA - O Método (AG)

O MÉTODO
Aluísio Gurgel*


Era a coisa mais linda e desejada do mundo, a felicidade da família mas, como toda criança, dava um trabalhão para dormir. Na condição de pais de primeira viagem, não demorou muito para que exaurissem todas as técnicas possíveis e imagináveis até que, certo dia, alguém sugeriu o carro. “Não tem como errar. É tiro certeiro e não precisa de volta longa. Cinco minutinhos serão suficientes para derrubar no sono!”. 

De imediato, arrumaram a cadeirinha no banco traseiro, se ajeitaram e lá se foram em família. Decidiram dar algumas voltas na praça a título de experimentação. Começaram pelas 20h e o resultado da conferência foi o olhar aceso e atento a tudo. Prosseguiram com a segunda volta e perceberam que aquela cabecinha linda principiava a balançar. 

Na terceira volta sentiram o poder e a força do movimento: os olhinhos começaram a quebrar. Na quarta volta estavam completamente cerrados mas a cabecinha ainda bamboleava. Veio a quinta volta para completar o ciclo e a cabecinha pendeu sobre o pescoço. 

Uma magia espetacular, não fosse a desconfiança da polícia que parou o carro numa brusca abordagem. Nem deu tempo de explicar direito aos guardas, ela abriu o berreiro novamente!


POESIA - Soneto Decassílabo Lusitano (VM)

 PROVISÃO EXAGERADA
Vianney Mesquita*

 (Para o Prof. Régis Kennedy Gondim Cruz)

Entre a avareza e a prodigalidade está a Economia – virtude que o homem honesto deve predicar. (PAOLO MANTEGAZZA, ficcionista, neurofisiologista e antropólogo italiano. Monza, 31.10.1831; San Terenzo, 28.08.1910). 


Avaro é quem porta só dinheiro,
Eis que gaveta não há no esquife.
De tal não cogitou seu alarife,
Tampouco de pôr bolsos no carneiro.
 
Se subiu no luctífero cacife,
Do jogo sub ovante e passageiro,
Transformar-se-á em almoxarife
Das falsas gemas sem seu tabuleiro.
 
Outras conformes, racionais numismas
No ser humano ao proceder presidem,
Deseixando cifrões por vários prismas.
 
Fartura e mesquinhez impõem merismas –
Pois temas econômicos colidem –
Com vistas a defenestrar sofismas.


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