segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

RESENHA - Como Pequenos Doces Socos no Estômago (MB)

 Como pequenos
doces socos
no estômago
Manoela Bacelar* 

 

Sol, sangue e lágrimas no agreste poético de um amor proibido que sobrevive a uma carta lacrada na posta restante do tempo. 


No Século XIX, Ludwig II, rei da Baviera, foi alvo de uma conspiração política. Uma junta médica assinou um relatório sobre sua saúde mental sem sequer examiná-lo. Paranoia, o diagnóstico. Deposto, morreu sob condições desconhecidas aos 41 anos. Não casou, não fez herdeiros. Era amante das artes. Ludwig II era homossexual. 

A história real do remoto monarca europeu toca a história ficcional contemporânea de Raimundo Gaudêncio, personagem principal de “A Palavra que Resta”, romance de estreia do cearense Stênio Gardel (2021, Companhia das Letras), finalista da 64º edição do Prêmio Jabuti.  

Em linguagem de prosa lírica, o autor maneja o léxico particular do nordeste rural brasileiro com a naturalidade de quem viveu as intensidades do sertão físico e simbólico. Está tudo ali. A paisagem, o
patriarcalismo, a dureza do chão e da honra, o não letramento e o desejo a brotar, não impunemente, entre dois rapazes: Gaudêncio e Cícero.Seis letras só, mas cabia tanta coisa que era pesado.”
  

A viagem literária atravessa quatro partes divididas em muitos e curtos capítulos, medida quase-exata de tempo-espaço para nadar e engolir as águas emocionais dos personagens. Braços dados com Gaudêncio, vi os “olhos cor de terra de Cícero lavrando os seus, a moita, a enchente, a farinhada, vi Seu Nonato com a cara virada no cão” quando os flagra no prazer inocente. Senti a quentura do sangue nas costas. Ouvi a mãe: vá embora. 

Eis a encruzilhada humana onde Ludwig II e Gaudêncio encontram-se. Ambos vítimas da violência de estruturas sociais que repudiam as pluralidades do amor. Século XIX, Século XX, Século XXI. 

No caso de Gaudêncio, outras camadas ampliam seu lugar marginal. A falta de escolaridade e a pobreza financeira fazem dele um refugiado na própria terra e não menos refugiado nas dobras da consciência da própria sexualidade. Isso se evidencia nos diálogos internos de medo, culpa, vergonha e raiva do protagonista, cuja voz costura o fluxo narrativo e se alterna, ora à voz de um narrador em 3ª pessoa, ora às vozes de outros personagens. 

A estética narrativa é contundente. Assim como a descoberta do filicídio representado pela cruz enfiada na terra: o avô de Gaudêncio matara o próprio filho por gostar de homem. O “vá embora” da mãe Caetana guarda uma medida de proteção à vida do filho? Quanto de ódio? O açoite do pai Damião é castigo mitigado frente à morte do irmão? Desonra? 

A crueza das cenas criadas por Stênio remete à crueza da poesia de Augusto dos Anjos: a mão que afaga é a mesma que apedreja... a voz que afaga, a voz que afoga. 

Cícero é a neblina de Gaudêncio, como Diadorim e Riobaldo. Mas neblina grossa é a carta. Por imposição do mesmo sistema brutal de exclusão que o expulsara de casa na juventude, Gaudêncio guarda uma carta cinquenta anos, escrita por Cícero. Não pode ler. É analfabeto. 

Após décadas na estrada como ajudante de caminhoneiro, Gaudêncio usa uma máscara social que não lhe cabe mais. A autoclausura de um muro imaginário se despedaça no momento em que ele esfacela a costela de Suzzanný Dinamarka, uma travesti que quase morre pelas mãos de ira e de catarse de Gaudêncio. 

O enredo surpreende com as possibilidades que Suzzanný representa na vida de Gaudêncio. Coragem, bravura e dignidade são virtudes que compõem o mosaico psicológico transfênix da salvadora. 

A obra cuida de tangenciar o conceito de família e a necessidade de sua reconfiguração, tendo o afeto como centralidade. 

Ao contrário do que a realidade fez com Ludwig II, a ficção permite o amadurecimento do nosso sertanejo. Ora com suavidade, ora com brutalidade, sempre com ritmo; como pequenos socos doces no estômago do leitor. 

Gaudêncio aprende a ler e escrever aos 71 anos. “Era o possível mais certo, o encontro mais interessante, esse, a mão, o lápis e a folha de papel.Mas... o que Cícero diz na carta?


Nenhum comentário:

Postar um comentário