segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

ARTIGO - O Incêndio do Reichstag (RMR)

 O INCÊNDIO DO REICHSTAG
Rui Martinho Rodrigues*

 

Historiadores divergem sobre a História ser considerada mestra. Epidemiologistas, urbanistas, economistas e militares valorizam o que chamam “lições da História”. Dizem que as epidemias passadas, o desenvolvimento das cidades, as crises econômicas e os sucessos no campo bélico encerram lições preciosas. Os historiadores, porém, não formam consenso sobre isso. Os que retiram lições do passado consideram aspectos específicos da experiência humana. 

Os que negam à História o papel de professora se opõem ao tradicionalismo que pode vir junto com a ideia de História orientadora. Também por entender que historiadores interpretam fatos e atos cujo significado e alcance não pode ser considerado indubitável. Finalmente porque a visão do historiador tende a ter uma abrangência mais ampla do que os estudos específicos de epidemiologistas, urbanistas, economistas, estrategistas e outros estudiosos de áreas específicas.


Olhando para o conjunto da experiência humana é possível vislumbrar altos e baixos, idas e vindas que descaracterizam uma marcha evolutiva no sentido de mudanças com o significado de aperfeiçoamento. Jacques Le Goff (1924 – 2014), na obra “História e Memória”, ressalta a diferença entre a marcha dos acontecimentos no âmbito científico, tecnológico, da organização política e jurídica, de um lado; diversamente das transformações da condição humana. 

A técnica e a tecnologia de fato avançam e o fazem rapidamente, alcançando notáveis aperfeiçoamentos. A ciência também avança no mesmo sentido, porém o faz mais lentamente, considerando-se o largo tempo decorrido entre as poucas revoluções científicas. Os “avanços” dentro de um mesmo paradigma de ciência não seriam propriamente evolução, mas meros complementos do conjunto de referências cognitivas estabelecidas, na visão da escola do racionalismo pós-crítico (Thomas S. Kuhn, na obra “A estrutura das Revoluções Científicas”). 

A organização jurídica e política, por sua vez, não segue uma direção contínua, mas uma linha sinuosa com alternância da direção seguida. Registre-se, ainda, a natureza polêmica do que seria aperfeiçoamento evolutivo no campo jurídico e político, é um juízo permeado por concepções ideológicas e marcado pela divergência do que seja progresso nas relações sociais, embora haja um núcleo consensual concernente a alguns valores. 

Não existe, todavia, um entendimento pacífico quanto ao modo como defendê-los ou protege-los. A ideia de progresso ou avanço, quando se tem uma definição minimamente consensual sobre o que seja tal coisa afasta a ideia de evolução histórica, no sentido de aperfeiçoamento, problematizando o reconhecimento de lição concernente ao que não se define aperfeiçoamento. 

A evolução, no sentido de aperfeiçoamento, deveria, no entendimento de alguns, atender a três requisitos: (i) alcançar uma melhor convivência do indivíduo consigo mesmo, devendo ter menos conflitos íntimos, dependendo menos de ansiolíticos e soníferos, apresentando menores índices de suicídio; (ii) coexistência mais pacífica e mais cooperativa com o outro, conflitando menos, tendo menores índices de criminalidade e de ações judiciais, tanto penais como civis; e (iii) melhor convivência com a natureza, preservando espécies, biomas, qualidade do ar etc. Tal conjunto não existe. 

Os gregos falavam em eterno retorno. A Antiguidade clássica não reconhecia progresso, mas aceitando a recorrência dos acontecimentos, aceitava a ideia de lições da História. A visão bíblica, segundo a qual a experiência humana levaria ao que se pode considerar como decadência, antevendo o crescimento da iniquidade, pode até ser vista como lição, por mostrar exemplos do que não deve ser feito, entremeado com uns poucos atos virtuosos de agentes da história igualmente escassos. 

Acontecimentos históricos podem oferecer lições em campos específicos. O incêndio criminoso do Reichstag (prédio do parlamento alemão), em fevereiro de 1933, apenas quatro semanas após a posse de Adolf Hitler no governo, é um caso exemplar de aprendizado em matéria específica. O jovem imigrante holandês Marinus van der Lubbe (1909 – 1934), militante comunista, foi responsabilizado. Não se discute muito a condição de autor do crime, a ele atribuída no inquérito que apurou o fato. Mas há quem fale em “operação de bandeira falsa” (feita por uma parte em um conflito, aparecendo como se a outra parte fosse). 

Discute-se a corresponsabilidade do Partido Comunista Alemão ou do Movimento Comunista internacional (MCI), dirigido, na época, desde Moscou. Também há quem avente a hipótese de que o jovem comunista holandês tenha sido inadvertidamente usado pelos nazistas, que depois se aproveitaram do fato. Não se pode afirmar que o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (partido nazista) tenha induzido o jovem Lubbe a praticar o crime, mas inquestionavelmente tirou proveito a insensatez do rapaz, tendo implantado a ditadura nazista mais facilmente. 

A onda de choque provocada pelo incêndio criminoso ensejou a decretação do que muitos descrevem como um estado de emergência, da iniciativa de Hitler, com o apoio de democratas indignados com o crime. Começaram (i) as prisões. Primeiro às dezenas, depois às centenas e não demorou para atingirem os milhares. (ii) Advogados deixaram de ter acesso aos autos dos processos; (iii) “flagrantes” foram feitos, não no momento da prática delituosa (flagrante real), sem que fossem encontrados vestígios materiais da prática do crime (flagrante presumido); sem que tenha havido perseguição continuada (flagrante impróprio), conforme Ivan Horcaio (autor contemporâneo), na obra “Dicionário jurídico”. Pior: houve flagrante decretado, embora por definição esta espécie de prisão não se faça mediante decreto, por ser feita quando o ato criminoso é surpreendido no momento em que é praticado ou logo após havendo vestígios do delito ou havendo perseguição continuada, como dito. (iv) Condutas não tipificadas como crime passaram a ser tratadas como delitos. (v) Penas sem prévia cominação legal passaram a ser aplicadas. (vi) Surgiram delitos de opinião. (vii) No iter criminis atos preparatórios passaram a ser apenados. 

Tudo era legitimado, se fosse praticado pelos nazistas. Tudo era crime se praticado por integrantes da oposição. O judiciário se tornou partidariamente seletivo. As garantias do devido processo legal foram afastadas. Não voltaram a ser observadas. A situação só piorou, até as forças aliadas derrotaram o III Reich. 

Talvez a História auxilie a compreensão da realidade, feitas as ponderações pertinentes impostas pelas peculiaridades de cada situação histórica. O efeito bumerangue de certos atos pode ser claramente observada na História. Não é toda semelhança que pode levar aos mesmos resultados ou produzir efeitos análogos. Mas a contribuição da História não deve ser desprezada, como ressalta Marc Bloch, na obra “Apologia da História ou o Ofício do Historiador”.


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