segunda-feira, 11 de julho de 2022

CRÔNICA - O Sangue Falou Mais Alto (DCB)

 O SANGUE FALOU MAIS ALTO:
AUGUSTO E
EVALDO GOUVEIA DE OLIVEIRA
Dimis da Costa Braga*  

 

A história se passou no final da década de 1960. Havia nascido com talento nato em Orós, no Ceará, um menino prodígio que muito cedo aprendeu a tocar violão. Aos seis anos já cantava na “voz” da comunidade, um alto-falante que fazia as vezes de rádio. Um virtuose.

 

Seu nome? Evaldo Gouveia de Oliveira. Nessa época ele já era, ao lado de Jair Amorim, o maior compositor de músicas de “dor de cotovelo” do País. Enfim, já fazia grande sucesso. 

Evaldo havia ido em busca do sucesso no “sul maravilha”, em São Paulo, e de lá para o Rio de Janeiro, centro cultural do País, à época, junto com seus companheiros do Trio Nagô.

Sálvio Montenegro, manauara criado no Acre, conheceu Evaldo no Rio, onde morou, ao raptar na capital acreana, aos 22 anos, aquela que seria sua esposa pela vida inteira. Fugiram de Rio Branco e foram morar na ex-capital do País, onde se casaram (ex-capital de Direito, pois o Rio de Janeiro permaneceria anos sendo a capital de fato). 

Essa linda história de Sálvio com sua Mariolanda merece outra crônica: o caso é sobre um rapto sensacional que também não pode deixar de ser registrado para a posteridade. Fá-lo-ei oportunamente.

Voltemos, por hora, para o caso de Evaldo e Augusto Gouveia. Evaldo tinha aprendido as primeiras notas com seu pai, em Iguatu, no Ceará. Mas sequer lembrava direito do velho, nem sabia com que idade estaria se estivesse vivo, pois tinha ido para o Amazonas, como soldado da borracha, e não dera mais notícia. 

Mas esse pai, Augusto Gouveia, dos seringais de Lábrea seguiu para o Território do Acre e depois de muito suportar trabalho escravo, se abancou na capital, contraindo novas núpcias e apartando-se da antiga família para sempre. Agora o Acre já era Estado da Federação e a vida tinha melhorado bastante. 

Em Rio Branco, após aposentar-se das atividades de seringueiro, o velho Augusto conseguiu um pequeno sítio onde mantinha algumas cabeças de gado para o consumo de leite, plantava macaxeira, pequenas leiras de verduras, criava umas galinhas para o gasto da família e exercia o comércio de bebidas e alimentos, nos fins de semana, aproveitando um pequeno lago que servia de piscina aos clientes, muito agradável. Era o Sítio Boágua – nome de antigo açude do seu Ceará – onde vivia com mulher e filhos, carregando no peito a dor de ter deixado uma família na terra distante, sem jamais poder voltar.

 

Evaldo Gouveia fazia grande sucesso como compositor, cantor e violonista, liderando o Trio Nagô. Sálvio o conheceu, como tantos outros famosos, quando morou no Rio, para onde continuava viajando com frequência a serviço ou de férias. Naquele tempo não havia o “não me toques” típico da gente famosa dos dias de hoje: todo mundo era acessível. 

No Brasil havia, então, vários trios famosos, em que dois se destacavam: o Trio Irakitan, que dispensa apresentação pelo sucesso que fazia, e o Trio Nagô, então mais famoso, no auge da ribalta, composto pelos cearenses Evaldo Gouveia, Mário Alves e Epaminondas de Souza. 

Sálvio, após fazer as pazes com os sogros e voltar para o Acre, frequentava o sítio Boágua e conhecia seu dono, o sisudo senhor Augusto Gouveia, que nos fins das tardes de domingo, quando já estavam somente os mais chegados, pegava seu violão e mostrava um talento único, impressionante, naquela sua simplicidade nordestina. 

Numa dessas tardes de domingo, Augusto veio da casa de residência para o bar mais sisudo que de costume. O bar nada mais era que um chapéu de palha, avarandado com treliças de madeira. Entrava-se por uma pequena porteira, e numa extremidade havia uma parte reservada atrás de um pequeno balcão com portinhola de levantar, onde ficavam a geladeira a querosene e o fogão de lenha.

Passou por todos, solene, sem levantar a cabeça, suspendeu a portinhola levadiça de madeira com dobradiças, no fim do balcão, e entrou muito sério, formal, numa mão o violão, e sob o braço, chamava a atenção uma revista. 

– O que é isso, seu Augusto? – alguém perguntou. 

– Não é nada, não, respondeu o velho. Fez um gesto levantando o braço e jogando a mão para cima, como se lançasse algo ao longe. 

– Não se arrelie, seu Augusto? 

– Tudo bem... eu vou mostrar. 

E abriu a revista. Era um exemplar de “O Cruzeiro”. Encontrando a reportagem de página central, apontou, com enorme orgulho. “Este é meu filho”. 

A princípio, ninguém acreditou. Era o Trio Nagô, e a foto que ele apontava, tal a semelhança, parecia ser dele mesmo, Augusto: era o jovem compositor e cantor Evaldo Gouveia, no auge do seu sucesso. 

Após se recuperar do susto, Sálvio disse que Evaldo era seu amigo, então foi seu Augusto quem quase caiu pra trás. Mas não duvidou, pois Sálvio era muito respeitado no Acre, desde muito jovem, quando gerenciava a Cruzeiro Linhas Aéreas, e teve a coragem de roubar e casar com a filha de um homem poderoso e valente, agora seu sogro. 

Sálvio então assumiu o compromisso de contatar Evaldo e disse que tudo faria pra trazê-lo para realizar o encontro do pai com o filho. 

Alguns meses depois foi ao Rio de Janeiro e encontrou Evaldo. Este, ao ouvir de Sálvio que conhecia seu pai, retrucou: “não é possível, Sálvio, meu pai morreu já faz muitos anos”. Mas Sálvio o convenceu mostrando uma velha foto e contando detalhes sobre os tempos de Iguatu, que Augusto lhe havia relatado.

 

Evaldo, constatando que Sálvio não estava de brincadeira, tomado por lágrimas de emoção, disse que não queria saber do velho Augusto. 

Revoltado, aos gritos, sob intensa mágoa, só não chamou o pai de santo – e disse que preferia continuar achando que ele morrera a saber que esteve vivo esse tempo todo, sem dar notícia ou qualquer apoio à sua sofrida mãe. Sálvio tentava, sem sucesso, demovê-lo daquele estado colérico, explicando as difíceis condições dos trabalhadores nos seringais, escravos sem grilhões. 

Ao saber da reação do filho, também o velho Augusto Gouveia disse que não era homem de levar desaforo para casa, principalmente de filho. 

No entanto, após muita conversa e mesmo Sálvio e seus amigos ouvirem de lá e cá que nenhum dos lados se responsabilizaria pelas consequências, o encontro foi confirmado. 

Foi preciso todo um preparo, pois a aparentemente impossível reconciliação não poderia parecer forçada, tinha que ser o mais natural possível para ambas as partes. 

Primeiro, Sálvio conseguiu organizar um convite, por meio de um interessado local, para um show do Trio Nagô no clube Rio Branco, que se deu com grande sucesso, vendendo todos os ingressos. Dia seguinte ao show, fez-se um caprichado almoço na casa de sua mãe, Dona Carmelita Barbosa, de onde seguiram de carro até o sítio Boágia, onde Augusto aguardava ansioso, de coração apertado. Tudo como se fosse um compromisso profissional e um passeio para conhecer os atrativos locais, sem outros interesses. 

O famoso filho, ainda incrédulo de tudo que acontecia, chegaria no Boágua por volta das 15:30. Nessa altura, a cidade inteira já sabia que o velho Augusto do Sítio Boágua era pai do famoso Evaldo Gouveia e muita gente foi ao sítio, na expectativa de assistir o encontro do ano. A casa estava lotada como nunca. 

Evaldo chega com Sálvio numa Rural Willys, sai do carro e caminha em direção da porteirinha do chapéu de palha onde ficava o bar simples, de piso cimentado com “vermelhão” e cercado de treliças de ripas de madeira. Desde esse momento, instalou-se o suspense. 

Evaldo caminhava em direção àquele que facilmente identificou como Augusto. E seguiu passo ante passo, como em marcha nupcial. Augusto também se movimentou de seu posto na vendinha, passando pela portinhola levadiça e caminhando em direção ao filho, no centro do pequeno salão. 

O silêncio era total. Nenhuma alma ali parecia respirar. Se uma mosca voasse nesse momento, os presentes poderiam ouvir o bater de suas asas. 

O que aconteceria? Evaldo tomaria satisfações? Ou abraçaria o pai, deixando para trás o passado de mágoas e abandono? E se este o questionasse, o que faria Augusto? Agiria como alguém que pede perdão ou seria ríspido, como era de seu ar sisudo, afastando para sempre o filho já magoado? Ninguém podia adivinhar a reação de ambos. 

Olhos nos olhos, apenas dois metros separavam agora pai e filho, dois homens criados no sertão cearense, de uma semelhança física e psicológica impressionante, semblantes iguais que pareciam jamais ter se afastado. Caminhavam um para o outro, até estarem frente a frente, quando estancaram, sem deixar de se olhar. 

O tempo parecia ter parado. Ninguém ousou abreviar os minutos que se esvaíram, enquanto fatos de décadas passadas passeavam pela memória de cada um, até que lágrimas começassem a escorrer dos olhos de pai e filho, como se cumprissem um ritual, um ato ensaiado, uma verdadeira cena de cinema. 

Então se abraçaram freneticamente, aos prantos, e sem dizer palavra, choraram lágrimas contidas há mais de duas décadas. Nem uma palavra de rancor, culpa ou incompreensão se fez ouvir. O sangue falou mais alto. 

Relaxados, depois, ainda revivendo a emoção, pai e filho só foram carinho um para o outro, relatando as aventuras vividas. Alguém trouxe o violão de Augusto, um outro para Evaldo e com um terceiro que tocava um atabaque, fizeram uma apresentação magistral, em que, para o orgulho de Evaldo, Augusto demonstrou conhecer as letras e as notas das canções de sucesso do filho, um segredo que havia guardado por muitos anos, e agora podia revelar. 

Daí pra frente, não mais perderam o contato familiar; o Sr. Augusto Gouveia e família recebiam visitas periódicas do filho no Sítio Boágua, onde residiu até os seus últimos dias. Já os novos irmãos de Evaldo, ele os levara várias vezes a passeio ao Rio de Janeiro e também a Fortaleza. 

Desde esse longínquo tempo, contavam os mais antigos que no Sítio Boágua, hoje área urbana, aconteceu a reconciliação entre Evaldo Gouveia e seu pai Augusto, história essa que, com o tempo, foi esquecida. O Sítio com seu pequeno restaurante continua sendo um local aprazível, embora tenha perdido o ar campestre de outrora. 

Hoje em dia, quando alguém que se recorda do ocorrido relata esses fatos aos mais jovens, ninguém acredita; dizem que é lenda. Será? Há quem jure de pés juntos que tudo ocorreu exatamente assim.

Nota do Editor: Evaldo Gouveia (1928-2020) era Membro Benemérito da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo, para a qual compôs o "Cântico Acelejano", a "Canção da Academia", e para cuja Comissão Editorial deu longas entrevistas sobre a sua vida, em muitas noitadas na sede social da entidade em Fortaleza, para a edição de sua biografia, "O Que Me Contou Evaldo Gouveia", escrita e assinada pelo acadêmico acelejano Ulysses Gaspar, lançada em 2017. A descrição de seu encontro com o pai, feita na crônica acima, coincide com o que diz a biografia. 

Na imagem-capa do Cântigo Alecejano, com Evaldo, da D para a E, Reginaldo Vasconcelos e os Maestros Poty Fontenele e César Barreto, coautores da letra, Poty também autor do arranjo e César o seu intérprete.   





 


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