ENGANO E AUTOENGANO
Rui Martinho Rodrigues*
A percepção e a realidade
Realidade: livro aberto ou enigma? Tem aspectos óbvios ou assim considerados sem grandes prejuízos. Mas pode ser enganosa. A complexidade do objeto, os nossos desejos, com o véu de Maya, de Arthur Schopenhauer (1788 – 1860), e informações ou convicções anteriores podem dificultar a compreensão do real e do imaginário.
Gaston Bachelard (1884 – 1962), em "O novo espírito científico", menciona obstáculos epistemológicos ou desafios à compreensão da realidade em razão de conhecimentos prévios supostamente válidos. Thomas Kuhn (1922 – 1996), na "A estrutura das revoluções científicas", trata da incomunicabilidade dos paradigmas e ressalta os limites da razoabilidade de estudos e pesquisas. Bachelard e Kuhn eram físicos que se tornaram excelentes historiadores e filósofos da ciência.
As ideias políticas são mais escorregadias do que as ciências da natureza, porque o fator humano não tem a regularidade nas respostas a estímulos, como os fatores físicos. Interferências de interesses e paixões são incomparavelmente maiores nos problemas políticos. A inconformidade com a realidade pode ser enaltecida como ato de coragem, visão privilegiada e abnegação, mas pode desconectar da realidade.
Isaiah Berlin (1909 – 1997), em "O sentido da realidade", examina o discernimento político ao tratar das tradições doutrinárias. Na obra Ideias políticas na era romântica, ele analisa o efeito do titanismo, atributo romântico que se opõe à realidade, podendo escorregar para ilusões, longe da superioridade intelectual de quem percebe o que foge à compreensão dos “alienados”.
Raoul Girardet (1917 – 2013), em "Mitos e mitologias políticas", ressalta a semelhança entre o pensamento das tradições políticas e a mitologia. Prudente, não nomeou nem descreveu mitologias políticas mais prestigiosas, que poderiam alijá-lo dos meios intelectuais. Mas pode inspirar o exame de aspectos que ele não ousou citar.
O paraíso perdido e o pecado original
A ideia de uma idade de ouro ou paraíso perdido está presente no pensamento político supostamente secular, inclusive o jacobino e o neojacobino. Uma comuna primitiva, sem distinção de classe, no passado distante, no relato bíblico, guarda semelhança com a narrativa havida como laica, do pensamento político. A perda do paraíso por um pecado original, cujos efeitos perduram, é outra semelhança embora um relato fale do fruto da ciência do bem e do mal, enquanto o outro culpa a apropriação da propriedade privada.
A promessa messiânica
Imediatamente após a queda e a consequente perda do paraíso, o relato bíblico introduz a promessa messiânica: a semente da mulher irá esmagar a cabeça da serpente e está lhe morderá o calcanhar. A semente da mulher, o Messias; a serpente o inimigo das criaturas de Deus. A propriedade privada, como o pecado original na narrativa ideológica, ao produzir a desigualdade de classe dá origem ao conflito fundamental entre elas, criando a dinâmica que terminará por destruir a divisão de classe recriando a sociedade sem conflito fundamental, sem exploração, sem desigualdade, análoga ao paraíso bíblico.
A semente libertadora, no discurso político, não virá da Abraão, mas da dinâmica social conflitiva como uma classe revolucionária. É grande a variedade do pensamento neojacobino. Mas a dinâmica do conflito, a marcha triunfal de volta para o paraíso não pode ser ignorada.
O novo homem redimido
Jean Jacques-Rousseau (1712 – 1778), no "O Contrato Social", afirma que os homens nascem bons, mas a sociedade os corrompe. Não explicou quem corrompeu a sociedade que corrompe os homens nascidos bons. Jacobinos ou os seus descentes guardam estreita afinidade com o Iluminismo do Contrato Social. A sociedade molda o homem, mas uma vez corrigida, deixará de corrompê-los, dando lugar a um novo homem. O texto bíblico diz: quem está em Cristo é transformado pelo Espírito Santo em nova criatura. Engenheiros sociais não admitem uma natureza humana cuja modelagem radical seja ilegítima, como a lavagem cerebral.
Autores laicos, mas educados em famílias de tradição judaica, cuja conversão, conveniente ou sincera, não implica em afastamento do relato do Gênesis, tornam as citadas semelhanças mais relevantes. O espírito missionário de personagens do mundo confessional e do ativismo político são muito semelhantes. Nas conversas jocosas é comum ouvir que a diferença entre um neojacobino e uma pessoa comum é que os comuns, se gostam de cinema vão ao cinema, o neojacobino, porém, se gosta de cinema quer que todos gostem, como imperativo de verdadeira consciência e de virtude cívica.
Ativistas virtuosos e carolas
Distinguir o missionarismo político do religioso é ainda mais difícil quando examinamos o virtuosismo de ambos os lados. Um lado tem ativismo político radical. O outro o carolismo. A fusão dos dois tipos é o fariseu que patrulhava condutas políticas, exigia correção, sendo uma corrente religiosa. O sentido de heresia e de blasfêmia está presente na correção política havida como laica.
Separar laicos e confessionais requer uma diferença essencial entre eles. Religião é a busca de superação da finitude, da totalidade e de radicalidade, conforme Thomas O’Dea, na obra Sociologia da religião. Não precisa haver divindade no fenômeno religioso. A superação da finitude do indivíduo pode ser na classe social, grupo identitário ou partido político, conforme as muitas faces do neojacobinismo.
A totalidade está presente em movimentos políticos que podem moldar literatura, teoria econômica, jurídica, política, saúde pública, urbanismo, pedagogia e Teologia. Tal abrangência é a totalidade e a radicalidade do fenômeno religioso. O debate sobre a contaminação da política por convicções confessionais deveria considerar o desafio que é fazer a distinção entre os confessionais e o laicismo.

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