sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

ARTIGO - A Paz (RV)

 A PAZ
Reginaldo Vasconcelos*

 

Fazem pouco sentido os movimentos pela paz, os apelos populares, as passeatas brancas, porque a paz nunca é iniciativa dos justos, mas consequência do equilíbrio moral destes e do controle compulsório dos cretinos. 

Ao longo da vida em sociedade, a paz não é ato, mas potência, que, uma vez alcançada, “é sempre por um triz” – para lembrar Chico Buarque. 

A paz é a ausência de conflitos, e os conflitos decorrem das muitas tensões essenciais. O que aproveita aos traficantes que não atirem na polícia, e vice-versa, se o confronto se instala? Ou suplicar aos assaltantes que não roubem suas vítimas? Acaso adiantaria rogar ao leão que não ataque o búfalo, se este é o seu alimento, ou instar o búfalo que não ataque o seu predador? Claro que seria inútil fazê-lo. 

Enfim, excluído o exemplo das lutas cruéis na natureza, dentro da cadeia alimentar, que a civilização já superou, e os facinorosos repristinam, a paz das pessoas e dos grupos racionais é quebrada ao romper de hostilidades, que se dá pelo seguinte processo: 

a) a iniciativa iníqua dos insensatos, os quais convertem sua energia sexual instintiva em ânsias de maior poder social, e em atos pela conquista de privilégios em geral; 

b) a consequente indignação dos oprimidos, os quais reagem em defesa de seu patrimônio, seja de cunho material, seja de cunho moral, legitimamente adquirido. 

Os instintos naturais que impulsionam os animais em geral, seja para a obtenção das condições essenciais à sobrevivência, seja para garantir a perpetuação geracional de sua espécie, pulsões desvirtuadas ou sublimadas pelo ser evoluído que não mais precisa delas, são convertidas em sentimentos nefastos de ambição, de vaidade, de emulação, de concupiscência, de usura, de apropriação. 

Sendo assim, a paz é sempre circunstância pontual, obtida aqui e ali pelos esforços do irenismo, pelo equilíbrio ético advindo de certos pactos de interesses, na configuração da bendita paz cristã. 

Mas se pode ainda obter a paz manu militari por meio da coerção jurídica, da sujeição moral dos fracos, pela contenção dos menos numerosos – e aqui encontramos o conceito do que se tem chamado “pax romana”. 

Os esforços conceituais feitos acima restam simplórios, pois, na verdade, a almejada paz cristã encontra limites circunstanciais incontornáveis. Tomemos como exemplo o pomo clássico, e imaginemos que, de dois indivíduos, cada um tenha para si uma maçã. Enquanto cada um deles se conformar com essa igualdade teremos então estabelecida a melhor paz. 

Mas, pode ocorrer que um dos dois sujeitos do exemplo, por uma daquelas compulsões animais supracitadas, passe a desejar ter para si mais do que tem, e então tente conquistar a maçã alheia. 

Nessa nova hipótese, a primeira fase do processo conflituoso entre em curso. Haverá, por conseguinte, um opressor e um oprimido, que medirão forças, fazendo eclodir a violência. 

É forçoso deduzir que o mais forte vença a luta e adquira a segundo maça para o seu prol, ou parte dela, e, como de regra ocorre, pela lógica da guerra, essa aquisição do vencedor se legitima. 

Tem ainda acontecido que o vencedor da contenda resolva aproveitar para si maçã e meia tão-somente, e então, até para estabelecer mais fácil controle do oponente, abandone a ele a outra metade. Se, reconhecendo a derrota, o perdedor aceitar como prêmio de consolação a ração menor, eis a paz romana.

Dar-se-á também alguma vez que um dos dois proprietários das maçãs íntegras, dono de espírito humanitário mais evoluído, admita que o outro merece maçã e meia, quem sabe, por lhe reconhecer o mérito de ter cultivado a macieira, e, por isso, espontaneamente, lhe conceda um quinhão maior da fruta, tendo em vista, inclusive, que meia maçã, nesta hipótese, o satisfaça. Novamente, no exemplo presente, a paz cristã.

 

Essa simbólica maçã representa aqui os bens da vida – a liderança, o comando, o poder, o patrimônio, a renda, o amante, o cargo, o título – e os conflitos que ela suscita, seja na forma de guerrilha, combate sangrento ou “guerra fria”, podem surgir no casamento, no condomínio, na família, na escola, nos negócios, na empresa, na política, entre os países. 

Pessoas e instituições precisam cumprir e fazer cumprir as leis, bem como reclamar sempre, e sempre por meios idôneos, seu direitos legítimos, pois, “paz sem voz, não é paz, é medo” – segundo expressão feliz do compositor Marcelo Yuka. Combater a injustiça, a ilicitude e a impunidade seria, portanto – em vez de pedir clemência aos agressores – a forma correta de impor a paz romana. 

Na outra ponta, procurar não oprimir quem quer que seja, dar “a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, para que se cumpra, pelo menos na dimensão individual, a paz cristã. Ceder graciosamente a parte da maçã que lhe sobeje, reconhecer o direito alheio, ser solidário aos bons, compreensivo com os tolos e tolerante com os menores.

Em suma, embora a paz social, como a felicidade, não possa ser entendida como um estando constante, deve ser perseguida pelo indivíduo, para que ele alcance e mantenha a paz de espírito. 


Do livro Eutimia - Reginaldo Vasconcelos - RDS Gráfica e Editora - Fortaleza - 2013.


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