segunda-feira, 21 de julho de 2025

CRÔNICA - Da Poesia e da Loucura (RV)

DA POESIA E 
DA LOUCURA
Reginaldo Vasconcelos* 

 

Às vezes eu ponho em dúvida íntima a minha sanidade cerebrina, e cogito conceder a mim mesmo um atestado de loucura – e aqui me consulto sobre se os psiquiatras, a quem cabe fazê-lo a terceiros, também não lhes ocorreria, eventualmente, diagnosticarem-se a si próprios sobre algum laivo de sandice. 

Por exemplo, acabo de editar o meu livro de memórias, em prosa poética, e a primeira impressão dos leitores mais chegados a mim é de que a obra dissente do normal, que não segue a fórmula ortodoxa das biografias em geral. “A tua é diferente... como tudo que tu fazes” – diz-me um deles. 

De fato, no meu relato, dou destaque às criaturas mais nobres que bordejaram a minha vida e que enfeitam a minha história, que não são, necessariamente, destacados e notórios personagens, dotados de grande importância social, mas, não raro, pessoas dentre os simples do povo, ricas daquela essência humana que a morte sublima, mas que o bronze das estátuas não conserva.

Fonte: Wikipédia

Aí eu me lembro da revelação de um amigo de infância do prodigioso compositor pernambucano Alceu Valença. Segundo aquele, este último, ainda mal saído da adolescência lhe apresentou as primeiras canções que produziu – de tão bela e exótica inspiração, e fornidas com letras de tão inusitada força lírica, que o jovem artista teria reiterado do seu confidente uma sincera opinião: “Tu achas que eu sou doido? Tu achas que eu sou doido?”. 

No meu caso, modestamente, não encontro em algum grau de genialidade artística a minha específica loucura, mas, pelo contrário, identifico-a na tendência de me enlevar com as pessoas e as coisas mais singelas da existência, como acima referi e em seguida especifico. 

As ervas incultas que medram entre as pedras das calçadas e no canto das paredes em qualquer ponto da Terra, assim como nas ruinas do Coliseu e de Pompeia e alhures além, meneando o caules frágeis na brisa, sob o sol meigo da manhã, me enternecem muito mais do que me deslumbram os suntuosos jardins bem amanhados mundo a fora.

O mármore domesticado e bem polido que brilha no piso dos palácios, por seu turno, não me diz tanto quanto o rude pavimento asfáltico que perfura imensidões, assoalhando a rota de aligeirados viandantes, conduzindo assim tantas almas e tantos corações ao seu destino de lonjura e de saudade. 

E as paisagens rústicas de árvores vagabundas e de pedras toscas e de aguadas infelizes, e de vivendas em que se nasce, vive e morre, que margeiam as rodovias pelas quais flano mansamente quando em vez – cenas que fogem aceleradas das minhas vistas rumo ao passado imediato, tudo isso é para mim uma rica experiência de vivência e de mistério, muito mais emocionante e realista do que a aventura de varar continentes e oceanos entre nuvens, através de amortalhados “deslugares”. 

Enfim, assim como as rosas de Cartola não falam, muito menos deblatera a pedra no caminho de Drummond, todavia, a mim e a ele um seixo casual que se interponha numa vereda da vida pode dizer muito no seu ontológico silêncio, quem sabe, no meu caso, ditando-me também um poema que escuto nos esconsos de mim mesmo e nem escrevo.

 

Fonte: Gazeta do Povo

A propósito, a poetisa Adélia Prado constata em lindo versejar retórico que, frequentemente, a plena sanidade mundana lhe vem cegar o espírito lúcido das suas musas: “Às vezes Deus me tira a poesia; eu olho pedra, e vejo pedra mesmo”.          

          

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