DA POESIA E
DA LOUCURA
Reginaldo Vasconcelos*
Às vezes eu ponho em dúvida íntima a minha sanidade cerebrina, e cogito conceder a mim mesmo um atestado de loucura – e aqui me consulto sobre se os psiquiatras, a quem cabe fazê-lo a terceiros, também não lhes ocorreria, eventualmente, diagnosticarem-se a si próprios sobre algum laivo de sandice.
Por exemplo, acabo de editar o meu livro de memórias, em prosa poética, e a primeira impressão dos leitores mais chegados a mim é de que a obra dissente do normal, que não segue a fórmula ortodoxa das biografias em geral. “A tua é diferente... como tudo que tu fazes” – diz-me um deles.
De fato, no meu relato, dou destaque às criaturas mais nobres que bordejaram a minha vida e que enfeitam a minha história, que não são, necessariamente, destacados e notórios personagens, dotados de grande importância social, mas, não raro, pessoas dentre os simples do povo, ricas daquela essência humana que a morte sublima, mas que o bronze das estátuas não conserva.
Fonte: Wikipédia |
Aí eu me lembro da revelação de um amigo de infância do prodigioso compositor pernambucano Alceu Valença. Segundo aquele, este último, ainda mal saído da adolescência lhe apresentou as primeiras canções que produziu – de tão bela e exótica inspiração, e fornidas com letras de tão inusitada força lírica, que o jovem artista teria reiterado do seu confidente uma sincera opinião: “Tu achas que eu sou doido? Tu achas que eu sou doido?”.
No meu caso, modestamente, não encontro em algum grau de genialidade artística a minha específica loucura, mas, pelo contrário, identifico-a na tendência de me enlevar com as pessoas e as coisas mais singelas da existência, como acima referi e em seguida especifico.
As ervas incultas que medram entre as pedras das calçadas e no canto das paredes em qualquer ponto da Terra, assim como nas ruinas do Coliseu e de Pompeia e alhures além, meneando o caules frágeis na brisa, sob o sol meigo da manhã, me enternecem muito mais do que me deslumbram os suntuosos jardins bem amanhados mundo a fora.
O mármore domesticado e bem polido que brilha no piso dos palácios, por seu turno, não me diz tanto quanto o rude pavimento asfáltico que perfura imensidões, assoalhando a rota de aligeirados viandantes, conduzindo assim tantas almas e tantos corações ao seu destino de lonjura e de saudade.
E as paisagens rústicas de árvores vagabundas e de pedras toscas e de aguadas infelizes, e de vivendas em que se nasce, vive e morre, que margeiam as rodovias pelas quais flano mansamente quando em vez – cenas que fogem aceleradas das minhas vistas rumo ao passado imediato, tudo isso é para mim uma rica experiência de vivência e de mistério, muito mais emocionante e realista do que a aventura de varar continentes e oceanos entre nuvens, através de amortalhados “deslugares”.
Enfim, assim como as rosas de Cartola não falam, muito menos deblatera a pedra no caminho de Drummond, todavia, a mim e a ele um seixo casual que se interponha numa vereda da vida pode dizer muito no seu ontológico silêncio, quem sabe, no meu caso, ditando-me também um poema que escuto nos esconsos de mim mesmo e nem escrevo.
Fonte: Gazeta do Povo |
A propósito, a poetisa Adélia Prado constata em lindo versejar retórico que, frequentemente, a plena sanidade mundana lhe vem cegar o espírito lúcido das suas musas: “Às vezes Deus me tira a poesia; eu olho pedra, e vejo pedra mesmo”.
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