A CRISE DO
JORNALISMO
Rui Martinho Rodrigues*
1
– Jornalismo, informação e conhecimento
O jornalismo é legitimado por oferecer informação factual e epistemologicamente válida. Transformações históricas modificaram o entendimento do que seja verdadeiro, proveitoso, justo, apropriado, conveniente ou certo como fundamento de validade de sua prática.
Informar ou formar? Acatar o entendimento do destinatário da informação ou guiar o entendimento e convencer? As duas opções remetem ao problema da neutralidade axiológica; da relação entre cidadania e presunção de capacidade; e do desafio da distinção entre conhecimento válido e opinião.
2 – Primeiro devemos sanear o problema
A atividade forense segue a norma do saneamento do processo, que consiste em retirar de pauta os conteúdos não litigiosos. A analogia entre a vigilância epistemológica e a técnica processual tem fundamento na busca da verdade, que é comum à ciência, à Filosofia e ao processo. Saneemos a nossa reflexão retirando de pauta o direito à informação, por ser incontroverso.
3 – Informação, opinião e conhecimento válido
Atender à demanda por informação leva ao problema da qualidade do jornalismo. Ser verdadeira, proveitosa, certa, justa, apropriada, conveniente, oportuna são alguns atributos da informação jornalística. Examinemos o que sejam tais predicados na perspectiva do jornalismo. A verdade objetiva ou correspondência entre o que é dito e o fato aludido tem como antônimo o erro. Não é legítimo nem válido buscar amparo no engano, salvo quando prevaleça o polêmico critério teleológico, que em nome dos fins pretende justificar a incorreção. Então passamos a cogitar da compatibilidade entre o que se sabe ou pensa e o que é dito, entrando no campo da verdade moral, que é o oposto de mentira. Falsear a realidade em nome dos fins é mentir.
A qualidade da informação leva, ainda, ao exame da verdade lógica, oposta ao erro. Os caminhos da lógica continuam sendo a dedução e a indução. Quem queira informar ou filtrar tais verdades deve levar em conta os princípios da racionalidade aristotélica: identidade, não contradição e terceiro excluído, podendo ainda considerar o princípio da razão suficiente, de Gottfried Leibniz (1646 – 1716). Críticas razoáveis à indução, como as que são proferidas por Karl Popper (1902 – 1994), não eliminam inteiramente a sua aplicação, porque não escorregam para o relativismo laxista. O mesmo ocorre com a dedução.
Quando os relativistas fazem silogismos para desacreditar a lógica, praticam argumentação suicida, porque precisam da lógica para combater a lógica, destruindo a própria argumentação. Quando invocam a metafísica da Filosofia romântica alemã, valendo-se da dialética hegeliana, incorrem na prática do titanismo, que despreza os limites da condição humana e da realidade, optando pela fantasia.
A verdade ontológica também deve ser considerada na discussão sobre informação válida. Defender o bem ou combater o mal, implícita ou explicitamente, está presente no jornalismo engajado. Nesta perspectiva a verdade não é claramente verificável. A metafísica é estranha ao campo da ciência. Esgrimida por quem se diz materialista torna-se contraditória.
O conhecimento válido é o fundamento de validade do jornalismo. A mentira e a restrição da verdade são conflitos entre o que sabe e o que se diz. Manipular da percepção do destinatário da informação não é honesto. A honestidade faz parte do jornalismo, como da ciência, do processo judicial ou da Filosofia.
4 – O conhecimento válido e jornalismo
Conhecimento científico é o que se submete ao teste de falseamento. Tales de Mileto (séc. VI a.C.) buscou validar o conhecimento. Tratou de superar a opinião, que é expressão da subjetividade. Adotou a vigilância epistemológica, que Popper, mais tarde, nomearia como falseamento da tese. A vigilância epistemológica faz parte do jornalismo.
Conhecimento válido respeita a neutralidade axiológica, porque é preciso distinguir juízo de valor de juízo de realidade. Um legista diz que a vítima de um homicídio apresentava uma ferida perfurocortante no terceiro espaço intercostal, enumera vasos sanguíneos e órgãos lesionados, relata hemorragia e hipovolemia como causa do óbito. Formulou juízo de realidade, não escolheu lado e do contrário seria desonesto. O Ministério Público diz que o réu esfaqueou covardemente a vítima. Fez juízo de valor, escolheu um lado e estaria errado se não o fizesse.
Informar, no sentido de relatar, é emitir juízo de fato, é ato axiologicamente neutro. Opinar, interpretar e valorar o noticiado, substituindo os cidadãos, é considerar incapazes os destinatários da informação. Despreparo técnico, conflitos de interesses e viseiras ideológicas inviabilizam o papel de jornalista gestor de consciência. A complexidade do mundo é argumento favorável ao proselitismo no jornalismo, por apontar para a incapacidade dos cidadãos. Mas os jornalistas precisariam ter preparo multidisciplinar para tutelar consciências. Convidados que colaboram com o jornalismo trazem de volta o problema da isenção, tanto quanto a quem os convida como por parte do convidado.
5 – A origem da crise do jornalismo
O Titanismo dos românticos rompeu com a realidade. Então um homem acha que é um cachorro ou alimenta outro delírio. Diversos motivos encorajaram o voluntarismo de que trata Isaiah Berlim, na obra Ideias políticas na era romântica. Afastada a verdade prevaleceu o pragmatismo político e a preocupação com o que se deveria fazer. A preocupação exclusiva passou a ser com o que se faz. O dever ser passou a ser visto com o caminho da ruina, por inspiração de Nicolau Maquiavel, 1469 – 1527, na obra O príncipe.
Paradoxalmente o romantismo foi misturado a um maquiavelismo adaptado à política dos nossos dias por Antonio Gramsci (1891 – 1937), na obra Maquiavel, a política e o Estado moderno, encorajando o jornalismo engajado. Nas redações dos jornais a motivação é ideológica, na diretoria das empresas de comunicação o faturamento é o motivo. Todos se aliaram e entraram para a grande aliança hegemônica.
Houve um casamento poligâmico. A tecnocracia do estamento burocrático de inspiração patrimonialista contraiu núpcias com o segmento social que Milovan Dilas (1908 – 1995) descreveu na obra A nova Classe. Também se consorciou com a plutocracia, artistas, celebridades e intelectuais. Formou assim o “sistema”, “Estado profundo”, grande aliança heterogênea ou regime. O jornalismo do himeneu polígamo. Então adotou técnicas de manipulação de consciência.
6 – A crise do jornalismo
Situações emocionantes e ambivalência dos conceitos indeterminados facilitam o proselitismo e ensejam arbitrariedades. Fake News substituiu boato, sofisma, falácia e mentira. Não é um estrangeirismo de enfeite. Nos EUA também é novidade nos noticiários. Até outubro de 2016 não passava de onze pontos nos registros das buscas. Chegou a noventa e dois pontos em março de 2020, quando Donald Trump derrotou Hillary Clinton em 2016.
Jornalistas anteciparam a vitória de Hillary, mas aconteceu o contrário, por larga margem. Como explicar? Notícias falsas das redes sociais eram o argumento que salvaria o jornalismo. A grande aliança tornou-se hegemônica. O argumento das redes sociais, como bode expiatório, valeu para o mundo todo.
Vocábulos indefinidos povoam todos os escaninhos da sociedade. Facilitam falácias e dominam tudo, sempre sob o controle do patriciado do Estado patrimonial, até que as tecnologias digitais mostraram ao povo como se fazem as linguiças e as leis, contra a advertência de Bismarck. Então foi preciso censurar as redes sociais para que o jornalismo não perdesse o monopólio do ludibrio.
Empresas e equipes profissionais perderam credibilidade. Abraham Lincoln dizia (1809 – 1865): é possível enganar todos algum tempo, alguns por todo tempo, mas não é possível enganar todos todo tempo. A cegueira dos paradigmas, de que fala Thomas Kuhn (1922 – 1996), na obra A estrutura das revoluções científicas, não é universal, só alcança quem é inoculado por um paradigma.
O poder é o objetivo da política. Não sendo possível ser amado? Então seja temido, diz Maquiavel. O poder pode ser alcançado e mantido por meio de subterfúgios que vão desde sofismas sofisticados até a mentira grosseira e a intimidação por diferentes meios de que dispõem o “Sistema”.
Mas a crise do jornalismo é visível a olho nu.
Descrédito é o nome dela.
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