terça-feira, 5 de março de 2024

ARTIGO - Estado Democrático e Linguagem (RMR)

 ESTADO DEMOCRÁTICO
E LINGUAGEM
Rui Martins Rodrigues*

 

Progresso deveria considerar três condições: o relacionamento do indivíduo consigo mesmo; com o outro e com a natureza. Sem isso é falácia. Aperfeiçoamento é factível quando dirigido a problemas específicos. Respeito às garantias do devido processo legal é realizável por tratar de um problema específico e por se tratar de conceitos bem definidos. O significado das palavras não deve ser nebuloso. Dizer que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal, que o processo deve ser do tipo acusatório (quem investiga, quem acusa e quem julga devem ser pessoas diferentes) são problemas específicos e têm significado claro e são factíveis. 

A palavras de semântica elástica afastam a segurança jurídica. O Estado Democrático de Direito(s) EDD, todavia, tem como fundamento de validade princípios como “dignidade humana”, “justiça”, “igualdade”, “proporcionalidade”, “razoabilidade” e outros igualmente indeterminados. Alguns não são propriamente obscuros, mas têm múltiplos significados polêmicos. Muitos aderiram ao EDD sem antes examinar o significado dos conceitos invocados como seu fundamento de validade. 

A desigualdade 

Um exemplo de polissemia eivada de sentidos polêmicos é palavra igualdade. Pode ser igualdade de alguns em tudo, como no caso dos reis filósofos da obra de Platão. Ou igualdade de alguns em algo, como os direitos concedidos às gestantes, idosos e outros grupos específicos, cujo fundamento de validade é a vulnerabilidade ou alguma necessidade especial dos discriminados positivamente. Pode ser a igualdade de todos em tudo, das utopias; ou de todos em algo, como a obrigação de obedecer a lei. Estas distinções são de José D’Assunção Barros (1957 – vivo), na obra Igualdade e Diferença. 

Igualdade pode ser, ainda, considerada como (i) oportunidades iguais na linha de partida; ou como (ii) resultados iguais na linha de chegada, também utópica, o mesmo que igualdade de todos em tudo. Mas igualdade lembra desigualdade, que segundo D’Assunção Barros é a diferença injusta. Mas o que é injustiça? Olhos escuros ou azuis são diferença, não desigualdade. E rendas diferentes são desigualdade (injustiça)? Produtividade, satisfação de demanda no conjunto de oportunidades de troca, resolutividade, unilateralidade da resolução, escassez do serviço ofertado e tantos outros fatores deveriam ser examinados antes de se falar em injustiça (desigualdade). Mas quem fala em igualdade e desigualdade torna explícito o que pensa de tudo isso? Não. Então EDD invoca muitos conceitos elásticos, como (des)igualdade, que é uma ideia apresentada e aceita quase sempre sem ser devidamente examinada. 

O bem-estar universal 

O bem-estar universal agora promete mais do que a satisfação das “necessidades básicas”, objetivas e hierarquizadas, concebidas por Abraham H. Maslow (1908 – 1970). Trata de coisas como dignidade e até do “direito de ser”, embora este seja mais rigidamente limitado pela reserva do possível, o que o faz mais adequado às utopias. Serve bem a quem deseja reivindicar mais poder com o objetivo de atender “direitos”. Mas direito é norma declaratória, transformá-lo em garantia, que é norma assecuratória, é promessa de paraíso terrestre. O nome EDD pode enganar liberais que pensam nos direitos como norma declaratória ou simplesmente potestativas. Pode enganar conservadores, que podem pensar na preservação do direito consuetudinário, dos costumes chancelados pela tradição entendida como o que deu certo, diversamente do sentido assecuratório das garantias. Conservadores são atentos a reserva do possível que é negligenciado pelas promessas do EDD. Mas percebem isso? 

O EDD propõe a igualdade de todos em tudo, administrada pelo Leviatã, dirigido pelos herdeiros dos reis filósofos, que Thomas Sowell (1930 – vivo) nomeia como “ungidos”. Juízes que não são servos da lei, mas “operadores do Direito”, investidos da prerrogativa de fazer justiça transformando a norma abstrata em justiça concreta, operação denominada concreção. “Ungido” não é intérprete ao modo de estafeta, não transmite recado da lei: é “operador” que faz justiça. E o que é justiça? A justiça dos juízes, sem a representatividade do Legislativo, é o governo de homens, não de leis, conforme o Neoconstitucionalismo e a Nova Hermenêutica Constitucional. É algo destinto da democracia. A usurpação da função legislativa é semelhante a proposta de Vladimir Iliych Ulianov Lênin (1870 – 1924) na obra O que fazer? na qual os detentores do saber não precisam consultar a maioria. 

Outros apontam os vícios da democracia representativa, especialmente em nosso país, como os senões de voto proporcional; partidos que não passam de siglas sem correspondência com o significado. Agremiações políticas vivem dias difíceis em todo o mundo. A pós-modernidade dissolveu as narrativas ideológicas e modificou o papel dos partidos. Mas os parlamentos ainda têm alguma representatividade. Não representam bem os interesses do povo porque é difícil discernir a melhor solução de problemas técnicos ligados a coisas como matriz energética, previdenciária ou tributos. Mas no que concerne aos valores morais e aos interesses sentidos diretamente pelos eleitores, aí os parlamentos, o nosso Parlamento em particular, tem algum respeito pela vontade do povo. Prova disso é a migração das decisões que o povo não aceita, que são retiradas da esfera legislativa e deslocadas para o Judiciário. 

O EDD é um Estado de direitos, que deveria estar no plural, amparado em uma constituição total, mais abrangente do que aquelas das constituições sintéticas. As novas constituições são dirigentes e programáticas, dizem como tudo deve ser, não deixam nada para o legislador infraconstitucional do futuro, salvo a regulamentação e especificação do que diz a Carta política. Tudo regulamentado, tudo dirigido e enquadrado por conceitos elásticos que deixam enorme margem de discricionariedade nas mãos da autoridade judicante. O controle concentrado de constitucionalidade, potencializado com a “interpretação conforme”, enseja ao STF o poder de controlar tudo na República. 

Os ungidos 

Ungidos defendem suas teses com argumentos distintos em etapas diversas da dinâmica política. Na obra Os ungidos Thomas Sowell descreve a tática de propaganda, doutrinação ou catequese que o autor citado designa como padrão. Estágio 1 é a crise, quando os ungidos se propõem a eliminar os aspectos negativos dos fatos, que são ressaltados. Estágio 2: a solução, fase em que políticas públicas são apresentadas como aptas para solucionar a alegada crise. Estágio 3: As políticas são instituídas e fracassam. Estágio 4: os críticos das políticas fracassadas são acusados de simplistas que ignoram a complexidade dos problemas. Os objetivos iniciais das políticas públicas, que não foram alcançados, são substituídos por outros, dando lugar ao anúncio do sucesso obtido. Um programa apresentado como guerra à pobreza, na década de 1960, nos EUA, prometendo “erradicar” a condição guerreada, não tendo alcançado o objetivo inicial, passou a ter como finalidade “humanizar” a condição que antes deveria ser erradicada. 

A falta de conhecimento destes aspectos ensejou a hegemonia ideológica dos ungidos. Lemos em Oseas 4; 6: “O meu povo foi destruído, porque lhe faltou o conhecimento; porque tu rejeitaste o conhecimento, também eu te rejeitarei, para que não sejas sacerdote diante de mim...”. O ópio dos intelectuais, título de obra de Raymond Aron (1905 – 1983), foi instilado nas escolas e universidades, promovido nas atividades culturais e exaltado nos meios de comunicação, sempre pelos ungidos, é semelhante à conduta dos sacerdotes rejeitados no texto do profeta citado.

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