sábado, 14 de outubro de 2023

ARTIGO - Estado Democrático de Direito - Parte três (RMR)

 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

PARTE TRÊS
Rui Martinho Rodrigues* 


Antecedentes históricos do Estado Democrático de Direito 

O chamado Estado democrático resultou de transformações que o metamorfosearam sucessivamente, adjetivando-o como “social” e, finalmente, como “democrático de direito”, conforme afirmamos nos textos anteriores e que resumidamente reafirmamos abaixo. 

Vimos que o Estado Liberal primava pelas garantias individuais, voltadas contra o absolutismo, expressando comandos dos cidadãos dirigidos ao Estado, típicos da segunda geração de direitos, com o significado de obrigações de não fazer: não condenar sem o devido processo legal; não cobrar impostos sem lei anterior que o autorize; não criminalizar opiniões; não violar o domicílio e a correspondência pessoal; não violar a liberdade de expressão censurando-a previamente e outras garantias. 

Vimos que obrigações de não fazer são imunes ao descumprimento sob a alegação de falta de meios ou de poder. No Estado Liberal o campo do Direito Público era limitado. A maior parte da vida social era regida pelo Direito Civil, que deixa escolhas aos cidadãos, alargando o campo da licitude, onde as condutas não são proibidas nem obrigatórias, conforme as liberdades negativas.

No Direito privado se algo não é expressamente proibido, então é permitido porque a regra é a liberdade. A igualdade era jurídica e política. O direito à busca da felicidade, adotado como Direito Natural, expressava a liberdade de empreender a busca do próprio destino. O Estado era limitado pelo ceticismo do falibilismo de John Locke (1632 – 1704) para com doutrinas que se apresentam aptas a aperfeiçoar a organização política, social, econômica e jurídica. O falibilismo propiciava, ainda, a aceitação da alternância, no poder, de correntes de ideias distintas. 

A crítica assestada contra o Estado Liberal (i) denunciava o caráter abstrato de direitos dados a quem não tem meios ou capacidade para defendê-los, (ii) imputava como iníquo o Estado que entregava os necessitados à própria sorte. Isso levou ao esforço de definição de necessidades básicas, como viria a ser feito por Abraham Harold Maslow (1908 – 1970) com a Teoria das Necessidades Humanas Básicas. 

Isso iria eclipsar aspirações, sonhos e desejos como subjetividades distintas das questões legitimadas pelo poderoso argumento das “necessidades” objetivamente definidas e valoradas com a classificação de “humanas”. Quem poderia ser contra? O campo do interesse público foi ampliado. Tópicos do Direito civil, onde a regra segundo a qual o que não for explicitamente proibido deve ser permitido, foram publicizados, passando a valer a regra do Direito Púbico, onde o que não é explicitamente permitido está proibido. Assim as liberdades individuais foram progressivamente restringidas. Mas ainda não era o bastante. Logo viria o momento do Estado Democrático de Direito. 

O Estado Democrático de Direito 

O Estado democrático de direito chegou como uma progressão do Estado Social. A proteção de vulneráveis e a satisfação de necessidades humanas básicas eram o fundamento de validade do Estado social, que Carlos Simões, na obra Teoria & crítica dos Direitos Sociais, qualifica estes direitos como “sociais tradicionais”. 

A nova postura expressa uma visão típica de uma teoria da História segundo a qual o processo civilizatório é evolutivo no sentido de uma marcha triunfal, composta por sucessivos aperfeiçoamentos. Nem todos percebem que tal visão evolutiva – portanto otimista – da História, ignora o fato de que o fenômeno constituído por uma sucessão de etapas mais aperfeiçoadas se aplica apenas à ciência e à técnica. Jacques Le Goff ( 1924 – 2014), na obra História e Memória, discorre sobre diferentes dinâmicas da História nos diversos campos da ação humana. 

Quanto a organização jurídico-política, econômica e social não se observa a marcha triunfal aludida, menos ainda a um suposto aperfeiçoamento da condição humana. Regimes políticos, ordenamentos jurídicos, sociais e econômicos podem ser piores do que os seus antecessores. 

A marcha evolutiva do homem exigiria, para ser minimamente válida, que nós alcançássemos (i) a condição de viver melhor com os nossos próprios conflitos; (ii) alcançássemos estágios de maior harmonia com os nossos semelhantes e (iii) com a natureza. Nada disso se observa no conjunto dos acontecimentos históricos. Falta fundamentação histórica para a tese da evolução histórica. Mas o “progressismo” passou a invocar os “valores sociais” como fundamento do Estado democrático de Direito. 

A ideia de marcha progressiva, todavia, produziu uma frase que expressa bem o seu entendimento: “a roda da História não gira para trás”. Só depois da queda da URSS e dos seus satélites a citada frase deixou de circular nos meios “progressistas”, mas a chamada “doutrina Brejnev”, do líder soviético Leonid Ilitch Brejnev (1906 – 1982), declara a vedação ao retrocesso histórico. 

Tal doutrina era invocada para justificar a limitação da soberania dos países satélites da URSS e tinha fundamento a tese segundo a qual a História era uma marcha progressiva e que o socialismo era uma etapa superior desta marcha, sendo por isso inadmissível o retrocesso. Tal inadmissibilidade, porém, não era espontânea, devendo ser executada pelos meios que se fizessem necessários, inclusive a força. Os executores da “lei” da História seriam os “progressistas”. 

A adjetivação dos valores como “sociais” parece indicar o descarte dos jusnaturalismos, sejam os ditos valores da vertente teocêntrica ou cosmocêntrica do Direito Natural. “Sociais”, neste caso, sugere que os valores invocados sejam antropocêntricos, o que torna as maiorias um poder ilimitado a cada momento, embora toda maioria seja ocasional, que quando amparado por constituições rígidas (que opõem obstáculos a emenda ou anulação de suas partes principais) têm o feito de manietar o legislador do futuro. Nem Hans Kelsen (1881 – 1973), na obra Teoria Pura do Direito, propunha o absolutismo das maiorias, limitando-as por meio da teoria da “norma hipotética fundamental”, que tem ensejado polêmicas. 

O Estado democrático de direito apresenta como fundamento de validade da ordem que propõe (a) a soberania popular; (b) a cidadania; (c) a dignidade da pessoa humana; (d) os valores (d1) sociais do trabalho e da livre iniciativa; os (d2) direitos individuais e coletivos; os (d3) direitos de nacionalidade; e os (d4) direitos políticos. A ênfase na universalidade é a fronteira que separa o Estado democrático de Direito do Estado Social. Os seus benefícios dirigem-se a todos, não se limitam ao campo trabalhista ou assistencial. 

O falibilismo retrocitado inspira ceticismo em face das fórmulas políticas e sociais. Diante de conceitos indeterminados ou obscuros, assim chamados por serem acentuadamente polissêmicos, exigem rigor na análise, para o que propomos as seguintes questões norteadoras: 

(I) A soberania popular seria aquela da democracia representativa, com um Parlamento soberano? 

Ou (II) seria aquela dos comitês populares? 

(III) A cidadania seria aquela protegida pela liberdade de consciência, com um ambiente em que moral não seria desqualificada como preconceito? 

Ou (IV) poderia haver crime de opinião? 

(V) A dignidade da pessoa protegeria a ilusória liberdade de ser, mas ao mesmo tempo restringiria a liberdade de consciência, de crítica e de opinião? 

(VI) Os valores estariam constitucionalizados sem limitar as liberdades de expressão, de consciência e de crítica? 

(VII) A adjetivação da pessoa como “humana” seria necessária ou é apenas um artifício retórico ou é preciso afastar a dúvida de que se trate, por exemplo, de pessoa bovina? 

As competências do Estado democrático de Direito 

A abrangência das competências do Estado Democrático de Direito, com uma grande ênfase nas obrigações de fazer, exigem do Leviatã transformado em curador (pessoa designada por lei ou por decisão judicial para cuidar de incapazes maiores de idade) dos cidadãos, tarefas para as quais são necessários meios e poderes para que possa realizá-las. É isso que as constituições adjetivadas como totais, programáticas ou analíticas propiciam. 

Não deve surpreender que a fome de tributos do Estado provedor seja insaciável, assim como o seu apetite por poder. A sabedoria dos antigos dizia: prulima legis, pessima res publica. Mas é da essência das constituições totais regulamentar tudo e delegar ao legislador infraconstitucional estabelecer normas sobre o que não for regulado originariamente pela Carta política. Trata-se, portanto, de um Estado de muitas leis, péssima republica segundo a sapiência dos romanos. 

Não surpreende que as liberdades individuais sofram progressiva restrição. O Estado curador, responsável por todos, tem poderes sobre todos. Assim é que maiores de setenta anos só podem contrair núpcias em regime de separação total de bens (art. 1.641 do CCB). 

Dirigir carro só é permitido a quem o Leviatã considera apto. Cinto de segurança e capacete de motociclista, que quando não usados comprometem a segurança de quem deveria usá-los, mas não afeta a alteridade, tem o uso imposto pelo curador dos cidadãos porque a responsabilidade pelos cuidados hospitalares é dele. 

A presença de sal, açúcar e palitos de dentes nas mesas de restaurantes, cujo uso não afeta ninguém, além de quem decide usá-los, devem ser proibidos, segundo os arautos do Estado democrático de Direito. Tudo em nome do interesse público alargado, que impõe: a regra é a proibição, logo, o que não for expressamente permitido é porque está proibido. Aos incapazes não se concede a liberdade de agir. Quem deixaria uma criança de dois anos enfiar o dedo em uma tomada de 220 volts? 

A soberania popular, desfraldada como o primeiro fundamento do Estado democrático de Direito, estimula, ou melhor, estimulou, em certa época, a realização de consulta popular, fosse como plebiscito ou como referendum. Houve até agremiação, defensora da proposta de Estado aqui analisado, que elencou no seu programa oito consultas populares como expressão da democracia direta. O direito a posse de um meio de defesa estava entre as consultas programadas. Foi feita a consulta popular e o resultado foi a derrota esmagadora da tese desarmamentista (64% dos votos contrários ao desarmamento e apenas dois municípios votaram diferente). 

O chamado Estatuto do Desarmamento era o objeto da consulta em apreço. Quando uma norma submetida a uma consulta dessa natureza não é aprovada, deve ser retirada do ordenamento jurídico em nome da soberania popular. Mas o referendum foi ignorado. Então a soberania popular só vale se for conforme o pensamento dos “reis filósofos”? As outras sete propostas de consulta popular foram esquecidas, embora o partido que as tinha em seu programa governasse o país. 

O Estado Democrático de Direito guarda relação com o Neoconstitucionalismo e com a Nova Hermenêutica Constitucional. Mas prosseguir nesta direção exige outra reflexão.


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