sábado, 6 de maio de 2023

ARTIGO - A Guerra na Ucrânia (RMR)

A GUERRA NA UCRÂNIA
Rui Martinho Rodrigues* 


Os conflitos obscurecem a visão dos observadores com a chamada “névoa da guerra”. Não sabemos claramente o que acontece. O pouco que talvez saibamos compreende aspectos como o fato de que os interesses de todas as partes, aparentemente, correm sérios riscos na situação atual. O comércio da China com EUA e União Europeia (UE) perde. A China perde mercado. O outro lado perde fornecimentos que não são substituídos facilmente. Os EUA perdem um grande comprador de títulos da dívida américa (China), que tem estoque deles e pode lançá-los no mercado e assim desvalorizá-los, dificultando a captação de novos financiamentos. A China perde novos investimentos ocidentais. Há também o risco de destruição mútua. 

A antecipação indesejada do conflito


O agravamento das hostilidades entre Oriente e Ocidente antecipa um conflito. Seria melhor para a China que viesse mais tarde. Os chineses estão crescendo mais, se armando mais e forjando novas parcerias e alianças. Salvo se eles tiverem informações sobre a fragilidade do Ocidente, a tal ponto que torne conveniente antecipar o conflito. Problemas de política interna da Rússia ou China podem criar a necessidade de um inimigo externo. A China estava ganhando a IV Guerra Mundial (a III GM foi perdida pela URSS) sem precisar lutar, conforme o conselho da Sun Tzu, autor de “A arte da Guerra”. Os EUA podem entender que o conflito deva ser antecipado, porque para eles quanto mais tarde pior. 

Temos guerra híbrida (propaganda, técnicas de manipulação, guerra cibernética, econômica e financeira, cultural e batalhas no velho estilo de balas e bombas). Erros de cálculo talvez expliquem a antecipação de um conflito que não interessava aos países da aliança eurasiana (Rússia, China, Irã, Paquistão, Coreia do Norte, Belarus, Síria e mais alguns). Quanto mais tarde melhor para eles, porque o Ocidente está em declínio, com crise financeira, desindustrializado, crise política, economia estagnada e divisão cultural interna. 

Erros de cálculo 

Dizem que só uma série de erros causa um desastre de aviação. A situação atual, na política internacional, é desastrosa. Todos estão perdendo, embora tenham a esperança de ganhos futuros. Quando a I Guerra Mundial (IGM) se transformou em guerra de trincheiras passou a ser uma guerra de desgaste. Cada lado achou que ganharia. Estavam enganados. Agora a Rússia aparentemente não está se desgastando tanto quanto a Otan esperava. O Rubro valorizou-se. As exportações russas cresceram, embora a preços mais baixos. A União Europeia não desmoronou por falta do gás e do petróleo russos. Alguns governos europeus caíram, mas isso não mudou a situação. 

O despreparo da Otan não impediu a resistência da Ucrânia, que depende dos armamentos ocidentais. As fábricas da base industrial de defesa (BID) ocidentais, fechadas por falta de encomendas, principalmente na Alemanha, agravada pelos baixos estoques que munição nos países ocidentais, ainda não causou a derrota da Otan empenhada nesta guerra por procuração com a Rússia. Os EUA mandaram 1,5 milhões de munições de 155mm, mais 300 mil de Israel, mais alguma coisa da França, Alemanha, Reino Unido, Holanda e Suécia. Até a Suíça “devolveu” 300 sistemas antiaéreos aos fornecedores ocidentais que os repassaram a Ucrânia. Portugal mandou armas. Pediram munição ao Brasil (que negou). Talvez a situação seja crítica, mas os combates continuam e as partes não fazem conceções. Talvez acreditem que o outro lado também está se exaurindo.

O Putin não pode sair derrotado, sob pena de perder o “emprego” e talvez a liberdade ou a vida. O ocidente não pode aceitar a derrota ou cairão governos e talvez regimes, além da perda da primazia na ordem mundial. A economia ocidental está fraca. A China pode ter algum ganho. A Rússia ficou dependente da “Terra do Meio”. Uma derrota da Otan deixaria a China como líder da ordem mundial. A derrota da Rússia, caso leve ao desmembramento do mosaico étnico da Federação Russa, deixaria espólios que certamente cairiam na órbita de Pequim. 

Erros levaram à guerra. A Ucrânia não caiu como aparentemente Putin esperava. A UE aceitou o sacrifício da renúncia ao gás e ao petróleo russos e isso certamente não estava nos cálculos de Moscou. A Rússia resistiu às duras sanções do Ocidente, um erro de cálculo da Otan. O fato de que a Rússia usou com parcimônia o poder militar (pouco uso de bombas termobáricas e a linhas de abastecimento da Ucrânia foram pouco bombardeadas) talvez para prolongar a guerra até que os estoques de munição da Otan se esgotem. As perdas humanas da Ucrânia poderão impor um limite ao esforço de guerra do país. Suas tropas já teriam sido substituídas quase inteiramente três vezes. A ofensiva ucraniana de agora seria com a quarta “edição” do seu exército. Os russos também têm tido muitas baixas. Não se sabe se politicamente podem suportar perdas como quem defende a própria casa. 

O impacto na ordem mundial 

As sanções impostas aos russos assustaram muitos países: podem fazer isso com uma potência nuclear como a Rússia! Ao passar a receber pagamento do gás e do petróleo em rubro ou em ouro a Rússia mostrou um caminho alternativo ao dólar. A produção de gás e óleo de xisto, tornando os EUA o maior produtor de petróleo (ou equivalente) criou um choque de interesses com os sauditas. A tentativa de manter o poder brando (influência diplomática) defendendo direitos humanos e “salvando o planeta” da mudança climática aprofundou o atrito com os sauditas, que em represália, passaram a receber pagamento do petróleo, por parte do seu maior cliente, a China, na moeda chinesa e fizeram as pazes com o Irã e a Síria graças a intermediação da Rússia e China. Influenciam, com dinheiro, a diplomacia do Egito, Jordânia, Marrocos, e outros países, o que pode deixar os EUA isolados no Oriente Médio e parte da África. A América Latina está quase toda dominada pelos “bolivarianos”. 

O futuro quase inescrutável 

Não se sabe o que o futuro nos reserva, exceto que grandes mudanças virão a um preço muito elevado. A reindustrialização de países e a reconfiguração de cadeias logísticas são exemplos disso. A revolução tecnológica e a dinâmica demográfica já estavam mudando tudo. A IV Guerra mundial, quer tenha uma pequena parte na forma de batalhas, como até agora, ou combates generalizados, aprofundará as transformações impondo grandes sacrifícios. É o que se pode vislumbrar em meio a névoa da guerra.

 

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