ANÁLISE CRÍTICO-LITERÁRIA
DO SONETO BARBEIRO
DE ANTANHO
Sousa Nunes*
(Decodificação para Língua Prosa)
BARBEIRO
DE ANTANHO
Vianney Mesquita
(Rimas Encadeadas nos Quartetos)
Se crês que, deixando crescer a barba,
adquires sabedoria, o bode de lindo ornato já nasce um Platão completo. [LUCIANO DE SAMÓSATA, literato turco. Província
Romana da Síria - Turquia, 125; Atenas, 181). Obs. Não usava barba.
Nívea, repousa na minha lembrança,
Descansa esta memória dos barbeiros,
Matreiros, profissionais brejeiros,
Labrocheiros, porém com temperança.
Na dança de apólogos passageiros,
Ligeiros – e se freguês criança? –
Não cansa o intento da autoconfiança
Na mansa via dos cabeleireiros.
Caiçara ou caipira analfabeto,
Certo e errado, porém diz direto
No mesmo ensejo em que o cliente anui.
Na barba fluiu sangue após raspagem
De sorte que ele faz esta abordagem:
Quer “arco”, quer “tarco” ou quer que “ mui”?
O soneto decassílabo lusitano Barbeiro de Antanho, do escritor palmaciano-cearense Vianney Mesquita, propõe uma fotografia pitoresca, bem-humorada e de leve sabor memorialista de uma figura típica do cotidiano antigo: o barbeiro popular. Inspirando-se, subsidiariamente, na epígrafe irônica de Luciano de Samósata – que ridiculiza a associação entre barba e sabedoria -, o poema constrói um painel de costumes em que a simplicidade popular é retratada com afeto e aguda percepção crítica.
TEMA E TÍTULO
O título, Barbeiro de Antanho, indica de imediato a perspectiva nostálgica: constitui o retrato de um tempo passado (“antanho”) em que o barbeiro era uma figura central em pequenas comunidades – conforme era a Palmácia do Poeta – tanto como profissional quanto na qualidade de contador de histórias, centro de conversas e, às vezes, quase uma espécie de “filósofo” popular.
O mote central é a relação entre aparência e sabedoria – ou melhor, a falta de compasso entre elas -, tratado de modo irônico e afetuoso, em chave de crônica consoada - e com rima encadeada nos quartetos.
LINGUAGEM E ESTILO
A linguagem é viva, coloquial em muitos momentos, mas cuidadosamente elaborada. Expressões como “matreiros”, “brejeiros”, “labrocheiros” conduzem riqueza sonora e intensa conotação cultural, aproximando o leitor do universo simples e rústico evocado.
O humor está em todo o poema, mas não é uma graça depreciativa, pois constitui uma celebração da autenticidade popular, mesmo quando mistura erro e acerto, sabedoria e ignorância (“Caiçara ou caipira analfabeto, /Certo e errado, porém diz direto”).
O soneto é estruturado em versos decassílabos que fluem com leveza e agrado, reforçando a impressão de naturalidade e espontaneidade.
ESTRUTURA ARGUMENTATIVA
As estâncias se organizam em duas etapas
principais:
– Nos quartetos, evoca-se a memória dos barbeiros como tipos populares, destacando sua astúcia, alegria e modesta autoconfiança, mesmo diante de suas limitações.
– Nos tercetos, mostra-se uma miúda cena humorística: após um corte de barba malfeito que provoca sangramento, o barbeiro oferece ao cliente, com seu linguajar pitoresco, três opções de “tratamento”, cuja pronúncia mal articulada reforça o retrato carinhoso de sua simplicidade.
A progressão da poesia é narrativa e visual, como uma pequena crônica, rimada em miniatura.
SIMBOLISMO E FILOSOFIA
O barbeiro de antanho representa mais do que um tipo social, porquanto é símbolo de uma sabedoria instintiva, prática, muitas vezes desprovida de educação formal, mas cheia de experiência de vida. Em contraste com a falsa ideia de que a aparência (como o uso da barba) conduz automaticamente à sabedoria – ironizada já na epígrafe – o conjunto poemático sugere outra modalidade de erudição: aquela que nasce da vida simples, da prática cotidiana e da convivência direta, experimentada por V.M. na Palmeiras de antanho, hoje Palmácia.
Há também um leve subtexto sobre as ilusões humanas: tanto o cliente quanto o barbeiro/cabeleireiro aceitam os acidentes da vida (como o corte acidental) com resignação e humor, sem dramatismo – uma lição tácita sobre aceitar as imperfeições com leveza.
TONALIDADE E MUSICALIDADE
O tom do poema é leve, bem-humorado e nostálgico, com momentos de ironia suave. A musicalidade é bem trabalhada: as rimas nos quartetos e tercetos concedem a essa produção poética uma cadência agradável, quase conversacional, que reforça o espírito de anedota viva a perpassar toda a composição.
REMATE
Barbeiro de Antanho é um soneto de memória afetiva e crítica branda, em que Vianney Mesquita combina humor popular, ironia filosófica e grande habilidade formal. Mediante a estampa do barbeiro rural, o Poeta recobra um mundo desaparecido, mas o faz sem saudosismo ingênuo: é um olhar lúcido, que reconhece as limitações daquele universo, mas também celebra sua autenticidade e lhe festeja a vitalidade.
A combinação de linguagem rica, ritmo fluido e crítica sutil torna a composição sob comento uma peça deliciosa de ler e de reler, oferecendo tanto prazer estético quanto alimento para a reflexão sobre as falsas aparências e o valor da sabedoria prática.
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