SOBRE ALMAS,
LUCROS E
OUTROS DETALHES
IRRELEVANTES
Valdester Cavalcante Pinto Jr.*
A moral serve sempre a quem não a pratica.
Dir-se-ia que nada é mais pitoresco, neste
vasto teatro de absurdos humanos, do que assistir a um cirurgião afeito
a concertos e consertos de corações infantis – criatura cuja rotina
envolve suturar milagres e adiar tragédias — ser arrastado, quase pelo avental,
à mesa dos burocratas para justificar seus honorários.
Eis-me,
portanto, convocado a participar desse ritual moderno em que gestores, armados
de planilhas que veneram como se fossem tábuas da lei, explicam ao pobre
cirurgião que a vida tem preço e, curiosamente, não é o deles.
Ah!
Como é sublime ver senhores que jamais enfrentaram um coração minúsculo entre os
dedos, salvo talvez o das próprias ambições, ditarem serenamente quanto vale em
numerário uma madrugada em bloco cirúrgico, um gesto preciso ou uma consciência
inquieta pelo destino de uma criança.
Assim
começa esta reflexão sobre a tragicômica condição de quem, na peleja para
reparar vidas em miniatura, é intimado a discutir números com quem não possui
alma ... nem coração. E, no entanto, é precisamente dessa contradição – entre o
gesto salvador e a mão cobradora – que nasce a velha fábula sobre o que significa
ser médico.
O
trabalho médico, dizem, é mais do que uma profissão. E como ousar discordar?
Há
quem considere que lidar diariamente com a morte, a dor e a imprevisibilidade
do corpo humano seja apenas um hobby, particularmente mórbido. O médico
(pobre criatura!) não é meramente um técnico, mas uma espécie de místico
secular, condenado a enfrentar o sofrimento alheio com a mesma serenidade com
que um santo arrosta tentações. E, como todo santo útil, é imediatamente
transformado pela sociedade em algo bem mais prático: uma ferramenta barata.
Sim,
é verdade: a medicina, essa arte nobre, esse sacerdócio moderno, converte-se
facilmente naquilo que toda virtude vira quando cai nas mãos certas – uma
mercadoria vistosa, empacotada e vendida ao melhor preço. E o médico? Ah, esse
felizardo! Uma engrenagem substituível, um objeto que se desgasta e, como tudo
o que se gasta, deve ser trocado – de preferência por alguém mais barato.
Não
me remeto a um trabalhador comum, desses que permutam horas por moedas e ainda
conseguem dormir sem crise existencial. Não. O médico penetra um jogo peculiar,
no qual sua alma – termo antiquado, mas conveniente – é mexida, remexida e
raspada diariamente. Ele é convidado, com toda a delicadeza de um carrasco
gentil, a sacrificar-se por um tal “bem maior”. E quem ousaria negar tão belo
ideal? Ninguém menciona (é claro!) que esse sacrifício tem menos de nobre e
mais de malandro: constitui estratégia engenhosa para que aceite jornadas
absurdas, remunerações indignas e condições de trabalho que fariam corar um
feitor do século XVIII.
A
medicina deveria ser o triunfo da humanidade sobre a dor; entretanto, como tudo
capaz de produzir lucro, torna-se um território governado pela contabilidade e
por esses seres iluminados que entendem planilhas como mais importantes do que
pessoas. O médico, esse ser outrora autônomo, transforma-se, então, em
acessório indispensável da máquina – não muito diferente de uma válvula barata
que se troca quando começa a dar trabalho.
E
por que não? Parece tão eficiente…
É
nesse momento que a tragédia desperta, boceja e se instala confortavelmente. O facultativo
cardiopata de crianças descobre haver sido enredado num labirinto de obrigações
morais que não servem para proteger ninguém, exceto o sistema que as inventou.
A própria vida – somente um detalhe – não merece descanso, tampouco
reconhecimento. Ele deve ser compassivo, sempre, e, simultaneamente,
indiferente ao fato de que sua compaixão não lhe rende paz, muito menos
segurança. Sequer uma noite de sono decente. O sacrifício, outrora virtude, se
transmuda em dever obrigatório, como se tivesse assinado um contrato vitalício
com a própria exaustão.
E
quem, fechado o firo, ganha com tudo isso? Certamente, não o médico. Há,
constantemente, porém, aqueles administradores, gestores, autoridades e outros
espécimes raros que, vivendo longe do som das máquinas de hospital e do odor da
dor humana, conseguem enxergar no cirurgião infantil aquilo que realmente
importa: um trabalhador maleável, moldável, explorável – quase um personagem de
ficção útil para gerar estatísticas positivas.
O
trabalho que deveria ser expressão da autonomia humana torna-se, então, uma cadeia
tão bem desenhada que quase parece racional. A medicina, em vez de libertar o
médico, o captura. No lugar de transformar dor em transcendência, transmuda
vocação em cinzas.
Não.
Este problema não se resolve com meia dúzia de reformas cosméticas, dessas que
os burocratas proclamam com o entusiasmo de quem acredita que pintar as paredes
de um navio afundando o tornará flutuante. Constitui algo mais profundo: da
própria identidade do profissional, sequestrada pelo sistema que finge
venerá-lo enquanto o consome.
Isto
porque o médico deveria ser um criador, não um servo; um agente de si mesmo,
não um fantoche movido a escalas impossíveis; mas que extravagância esperar
isso! O sistema – essa entidade faminta, tão delicada quanto um leviatã
adolescente – precisa desesperadamente da submissão do médico. E este, isolado,
esmagado pelas exigências morais que lhe jogaram ao colo, aceita, ao fim,
entregar, não apenas, sua força, mas, também, a própria essência.
Para
remate da estória, o que resta? Um profissional que, ao tentar salvar o outro, se
perde de si mesmo, figura que deveria ser guardiã da vida e finda como vítima
de uma lógica que dele arranca a própria humanidade – com recibo e tudo.
Não,
entretanto, pois sempre haverá outro cardiopata pronto para ocupar seu lugar.
O
sistema penhoradamente agradece…