sábado, 29 de novembro de 2025

NOTA - Dez Anos da Arcádia Nova Palmaciana (SN)

 DEZ ANOS DA ARCÁDIA
NOVA PALMACIANA
Sousa Nunes*

 

Ao Prof. FERNÃO DE LA ROCHE D’ANDRADE SAMPAIO, DD. Presidente da Arcádia Nova Palmaciana, nos seus 10 anos de gloriosa existência. 

 

Neste ano, em que a Arcádia Nova Palmaciana celebra o decênio de sua fundação – 2015  cumpre-me, como Presidente da Academia Cearense da Língua Portuguesa, e em nome de todos os que fazem esta Casa, render homenagem à Instituição que, desde o seu berço, nasceu sob a inspiração das letras, das artes e do saber, com o selo de permanência e grandeza que só as verdadeiras obras culturais conhecem. 

A Arcádia, que trouxe ao presente o antigo espírito de confrarias literárias, enraizou-se no solo fecundo de Palmácia como seiva renovadora, a exaltar o labor dos seus filhos ilustres, guardando na divisa Palmam qui meruit ferat o destino de premiar com a palma os que souberam dignamente conquistá-la. 

É justo, pois, que se proclame, em alto relevo, o nome de seu fundador, o nosso confrade e amigo Vianney Mesquita, membro ilustre da Academia Cearense da Língua Portuguesa, cuja inteligência criadora e devoção à cultura deram formato e substância a este organismo que hoje se firma como orgulho da terra palmaciana e do Ceará. 

Aos árcades novos, antigos e novatos, os quais, nestes dez anos souberam dignificar a Casa que erigiram, vai o nosso louvor, com a certeza de que o trabalho realizado já se confunde com a história literária e cultural do nosso Estado. 

Que outros decênios venham, fecundos e altivos, para que a Arcádia Nova Palmaciana siga como templo da palavra e laboratório de ideias, honrando o lema que a sustenta e o exemplo dos que a edificaram. 

Abraço o estimado Presidente, o árcade novo Eládio Dionísio, o Prof. Fernão Sampaio, por seu dignificante trabalho ao largo desse tempo, em que mourejou com rara habilidade para o manutenimento e perenidade da Nobre Casa, no Solar dos Sampaios, elevando Palmácia a uma dignidade de locus cultural e científico no País. 

Em nome da Academia Cearense da Língua Portuguesa, deixo à Arcádia Nova Palmaciana a nossa homenagem fraterna e jubilosa, certos de que Palmácia e o Ceará hão de reconhecer sempre, em sua obra, o triunfo da inteligência e o legado perene das letras. 

CRÔNICA - Sobre Almas, Lucros e Outros Detalhes Irrelevantes (VCP)

SOBRE ALMAS,
LUCROS E
OUTROS DETALHES
IRRELEVANTES
Valdester Cavalcante Pinto Jr.*

 

A moral serve sempre a quem não a pratica.

 

Dir-se-ia que nada é mais pitoresco, neste vasto teatro de absurdos humanos, do que assistir a um cirurgião afeito a concertos e consertos de corações infantis – criatura cuja rotina envolve suturar milagres e adiar tragédias — ser arrastado, quase pelo avental, à mesa dos burocratas para justificar seus honorários.



Eis-me, portanto, convocado a participar desse ritual moderno em que gestores, armados de planilhas que veneram como se fossem tábuas da lei, explicam ao pobre cirurgião que a vida tem preço e, curiosamente, não é o deles.


Ah! Como é sublime ver senhores que jamais enfrentaram um coração minúsculo entre os dedos, salvo talvez o das próprias ambições, ditarem serenamente quanto vale em numerário uma madrugada em bloco cirúrgico, um gesto preciso ou uma consciência inquieta pelo destino de uma criança. 


Assim começa esta reflexão sobre a tragicômica condição de quem, na peleja para reparar vidas em miniatura, é intimado a discutir números com quem não possui alma ... nem coração. E, no entanto, é precisamente dessa contradição – entre o gesto salvador e a mão cobradora – que nasce a velha fábula sobre o que significa ser médico.


O trabalho médico, dizem, é mais do que uma profissão. E como ousar discordar?


Há quem considere que lidar diariamente com a morte, a dor e a imprevisibilidade do corpo humano seja apenas um hobby, particularmente mórbido. O médico (pobre criatura!) não é meramente um técnico, mas uma espécie de místico secular, condenado a enfrentar o sofrimento alheio com a mesma serenidade com que um santo arrosta tentações. E, como todo santo útil, é imediatamente transformado pela sociedade em algo bem mais prático: uma ferramenta barata.


Sim, é verdade: a medicina, essa arte nobre, esse sacerdócio moderno, converte-se facilmente naquilo que toda virtude vira quando cai nas mãos certas – uma mercadoria vistosa, empacotada e vendida ao melhor preço. E o médico? Ah, esse felizardo! Uma engrenagem substituível, um objeto que se desgasta e, como tudo o que se gasta, deve ser trocado – de preferência por alguém mais barato.


Não me remeto a um trabalhador comum, desses que permutam horas por moedas e ainda conseguem dormir sem crise existencial. Não. O médico penetra um jogo peculiar, no qual sua alma – termo antiquado, mas conveniente – é mexida, remexida e raspada diariamente. Ele é convidado, com toda a delicadeza de um carrasco gentil, a sacrificar-se por um tal “bem maior”. E quem ousaria negar tão belo ideal? Ninguém menciona (é claro!) que esse sacrifício tem menos de nobre e mais de malandro: constitui estratégia engenhosa para que aceite jornadas absurdas, remunerações indignas e condições de trabalho que fariam corar um feitor do século XVIII.


A medicina deveria ser o triunfo da humanidade sobre a dor; entretanto, como tudo capaz de produzir lucro, torna-se um território governado pela contabilidade e por esses seres iluminados que entendem planilhas como mais importantes do que pessoas. O médico, esse ser outrora autônomo, transforma-se, então, em acessório indispensável da máquina – não muito diferente de uma válvula barata que se troca quando começa a dar trabalho.


E por que não? Parece tão eficiente…


É nesse momento que a tragédia desperta, boceja e se instala confortavelmente. O facultativo cardiopata de crianças descobre haver sido enredado num labirinto de obrigações morais que não servem para proteger ninguém, exceto o sistema que as inventou. A própria vida – somente um detalhe – não merece descanso, tampouco reconhecimento. Ele deve ser compassivo, sempre, e, simultaneamente, indiferente ao fato de que sua compaixão não lhe rende paz, muito menos segurança. Sequer uma noite de sono decente. O sacrifício, outrora virtude, se transmuda em dever obrigatório, como se tivesse assinado um contrato vitalício com a própria exaustão.


E quem, fechado o firo, ganha com tudo isso? Certamente, não o médico. Há, constantemente, porém, aqueles administradores, gestores, autoridades e outros espécimes raros que, vivendo longe do som das máquinas de hospital e do odor da dor humana, conseguem enxergar no cirurgião infantil aquilo que realmente importa: um trabalhador maleável, moldável, explorável – quase um personagem de ficção útil para gerar estatísticas positivas.


O trabalho que deveria ser expressão da autonomia humana torna-se, então, uma cadeia tão bem desenhada que quase parece racional. A medicina, em vez de libertar o médico, o captura. No lugar de transformar dor em transcendência, transmuda vocação em cinzas.


Não. Este problema não se resolve com meia dúzia de reformas cosméticas, dessas que os burocratas proclamam com o entusiasmo de quem acredita que pintar as paredes de um navio afundando o tornará flutuante. Constitui algo mais profundo: da própria identidade do profissional, sequestrada pelo sistema que finge venerá-lo enquanto o consome.


Isto porque o médico deveria ser um criador, não um servo; um agente de si mesmo, não um fantoche movido a escalas impossíveis; mas que extravagância esperar isso! O sistema – essa entidade faminta, tão delicada quanto um leviatã adolescente – precisa desesperadamente da submissão do médico. E este, isolado, esmagado pelas exigências morais que lhe jogaram ao colo, aceita, ao fim, entregar, não apenas, sua força, mas, também, a própria essência.


Para remate da estória, o que resta? Um profissional que, ao tentar salvar o outro, se perde de si mesmo, figura que deveria ser guardiã da vida e finda como vítima de uma lógica que dele arranca a própria humanidade – com recibo e tudo.


Não, entretanto, pois sempre haverá outro cardiopata pronto para ocupar seu lugar.


O sistema penhoradamente agradece…


 


DISCURSO - Retalhos, Reconciliação e Perenidade (BS)

Retalhos,
Reconciliação e
Perenidade
Beto Studart*


Hoje vim almoçar com todos vocês, meus amigos, liderados pelo meu estimado Lúcio Brasileiro, um amigo que construiu comigo uma história de bem-querença invejável. São 55 anos de amizade – uma vida inteira, intercalados por um mal entendido que me deixou profundamente triste. 

Foi, de fato, um luto, um daqueles lutos da alma que não se choram em velório, mas se sentem no coração. 

Mas esse luto passou. 

Porque somos adultos, porque nos queremos bem, porque amizade de verdade não se joga fora. Hoje, definitivamente, as sequelas se apagam. Hoje tudo se transforma em amor, maturidade e perenidade. 

Somos irmãos, irmãos verdadeiros e de eterno, temos a nossa amizade, que é linda. 

O Edilmo Cunha, esse cavalheiro da melhor estirpe, raríssimo de se encontrar, me disse que o Lúcio iria reservar um momento desse encontro para falar de mim – e confesso: isso me deixou muito feliz. Porque, querendo ou não, o tempo está passando rápido… e ninguém sabe o dia de amanhã. 

Estamos todos aqui para construir estradas e erguer pontes. Deixar amigos é parte essencial da nossa missão. 

Construir e deixar legado – esse é o compromisso de uma vida ilibada, vivida com propósito, disciplina e amor pelo que se faz. 

A finitude existe, é verdade, mas ainda está longe. Mesmo assim, a vida é surpreendente, e por isso precisamos estar sempre prontos para partir. 

Não como quem se despede, mas como quem tem pressa – pressa de realizar, de criar e de entregar o que o coração manda. 

Minhas ideias nunca serviram apenas a mim. Elas têm vocação universal: abraçam a cidade, a sociedade, as pessoas. Por isso, hoje, o Lúcio, o Edilmo e todos vocês colocaram mais um tijolo na minha construção de vida. 

Sempre carreguei comigo a humildade, mãe de todas as virtudes. Mas, às vezes, para os pobres de espírito, isso se confunde com vaidade. 

Sim, eu sou vaidoso – e com orgulho! Sou vaidoso porque faço bem feito, faço tudo para todos, faço para servir.

E tudo o que tem caráter universal merece ser celebrado. 

E é aqui que entram também os retalhos que carrego. 

Sou feito de pedaços de cada vida que passa pela minha, retalhos coloridos que vou costurando na alma.Nem sempre bonitos, nem sempre felizes, mas todos essenciais. Em cada encontro, em cada contato, eu cresço um pouco mais. 

Em cada retalho há uma lição, um carinho, uma saudade, uma história. E é assim que a vida se faz: de pedaços de outras gentes que, sem perceber, tornam-se parte da gente também. 

Nunca estaremos prontos – haverá sempre um novo retalho para enriquecer a alma. Por isso, agradeço a cada um de vocês que fazem parte da minha vida e engrandecem minha história com o que deixam em mim. 

Que eu também possa deixar pedaços meus pelos caminhos – pedaços bons, luminosos, úteis – que façam parte da história de vocês. 

E que, de retalho em retalho, possamos nos tornar, um dia, um imenso bordado de nós. 

Fim do dia, batalha vencida. 

Que venham outros natais, para eu abraçar o Lúcio Brasileiro, o Edilmo e todos vocês! 



Proferido no Restaurante Ugarte, do Jornalista Lúcio Brasileiro, na Praia do Cumbuco, por ocasião do tradicional evento "Unidos do Natal", em 28 de novembro de 2025.

  

CRÔNICA - A Importância da Palavra e a Indiferença do Silêncio (RV)

A IMPORTÂNCIA DA PALAVRA
E A INDIFERENÇA DO
SILÊNCIO
Reginaldo Vasconcelos* 
 

Dizem os ingleses, the tong breaks bones. De fato, a hipérbole desse adágio remete à contundência das palavras malditas – e mesmo das benditas, quando a intenção seja combater uma injustiça – como um velho advogado que tenha militado no Tribunal do Júri sabe bem. 

Então, manter a língua na boca ou utilizá-la, seja para quebrar ossos, seja para afagar os egos, é uma delicada e estratégica decisão, entre o silêncio e a expressão de um sentimento. Até porque o próprio silêncio é eloquente, pois nele pode residir o mel do afeto, o fel da mágoa, ou o vácuo da indiferença e do desprezo. 


Li uma vez de alguém que, para frisar a grande amizade que nutria por um outro, referia serem eles tão íntimos que capazes de varar as horas em silêncio, diante da lareira, desfrutando mutuamente a presença e a companhia. Ali o afeto era patente, era intuída a confiança absoluta, era pacífico que seriam inúteis as palavras. Estava tudo dito e sabido no silêncio dos amigos. 

“No princípio era o verbo”, diz a Bíblia, na abertura do Evangelho de João, no Novo Testamento. Desde então a palavra deve ser coisa sagrada, que não se deve despedir sem que seja fruto de reflexão e comedimento. Depois de ser dita pela mão fica gravada na pedra, no bronze, no papel, enquanto, proferida pela boca, se diz que a palavra vai ao vento. 

Todavia, uma vez pronunciadas as palavras sinceras calam na alma de quem as ouve e para sempre ficam lá – seja como uma pluma, uma brisa, uma fonte de água pura, dimanando uma perene fragrância de carinho e de estímulo, que perfuma a memória e eterniza o sentimento de gratidão e de ternura – ou como um odiento punhal que fere a alma e que revolta a cada vez que elas assomam à lembrança e ao pensamento.

E os termos carinhosos expressados por outrem e recebidos por nós ficam conosco, nos acariciando o espírito, mesmo e principalmente se e quando o silêncio perpétuo o leve antes para os campos do infinito. Suas palavras desmentirão a sua ausência física porque ele estará docemente impregnado em nosso ser, até que também deixemos de ser e vamos nos difundir no oceano do amor de Deus, na eternidade.

#Aos amigos Beto Studart, Marcos, Egídio e Mesquita.    


 

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

CRÔNICA - Dia da Consciência Negra (RV)

 DIA DA
CONSCIÊNCIA NEGRA
Reginaldo Vasconcelos*

 

Três povos foram convocados pela História para fundarem uma nova nação, o Brasil que conhecemos. 

Os primeiros, os súditos da monarquia mais modesta da Europa, que afinal teve que transferir a Coroa à colônia americana, para fugir à sanha bélica invasora.

Além desses, os povos indígenas, silvícolas encontrados por aqueles na colônia, ainda vivendo primitivamente. 

Por fim, os africanos, escravizados pelos seus inimigos nacionais, objetos de escambo mercadológico com colonizadores das Américas. 

Os europeus de então já detinham algum cabedal científico básico – a fusão de metais para a produção de ferramentas, indústria de tecelagem, boas noções de engenharia e arquitetura, técnicas náuticas rústicas, domínio da pólvora, saberes e fazeres de plantio e pastoreio...

Já os autóctones, esses tinham mais a receber que a oferecer, enquanto os africanos, além de vigorosa mão de obra, trouxeram ao futuro país a grande contribuição da sua rica cultura – nas artes plásticas, na música, na dança, na literatura, na culinária. 

Não fossem eles não teríamos Machado de Assis, nem Lima Barreto, nem Cartola, nem Clementina de Jesus, nem Milton Nascimento, nem Pelé, nem Larissa Januário – para ficar apenas em alguns dos nossos patrícios negros mais clássicos e notórios. 

Dentre muitos outros, inclusive os tantos de nós que temos ascendência africana e indígena em algum grau, oculta na genética miscigenada – não raro tão talentosos e ilustrados.

É a todos esses que a Nação reverencia na data de hoje, consagrada à consciência negra – termo que a antropologia moderna estende a todos os que trazem na cor mais escura da pele a origem honrosa dos colonizados valorosos.

E aproveito para dedicar esta crônica ao saudoso maranhense Gervásio Joaquim Leandro, filho de homem preto e mulher indígena, herói da pátria, combatente na Itália durante a Segunda Grande Guerra, pai da sempiterna companheira que é mãe das minhas duas amadíssimas filhas. 


 

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

ARTIGO - Entre a Colonização e a Cosnciência (VCPJ)

ENTRE A COLONIZAÇÃO
E A CONSCIÊNCIA
Valdester Cavalcante Pinto Jr.*

 A consciência é uma âncora, não um farol. Ela é bastante para evitar o naufrágio da inteligência, não para lhe indigitar a rota.

JAIME LUCIANO BALMES Y URPIÁ. (Sacerdote, teólogo e filósofo catalão. Vic, 28.08.1810; 09.07.1848).

Conquanto os comentários agora procedidos sejam motos avessos à minha seara de estudo, permaneço consciente de que, segundo o brocardo popular, “... quem não pode com o pote não pega na rodilha”. 

Não é a mim vedado, entretanto, tornar publicamente manifesta a ideia de que uma língua proferida por contingentes tão numerosos e dispersos, perpassando países e contextos culturais heterogêneos, não é passível de permanecer imune às interferências dos idiomas que já eram vivos antes dos processos colonizatórios. 

Toda codificação linguística nasce e se transforma no interior de uma universalidade compartilhada, de sorte a ser nesse locus revelada sua historicidade. Com efeito, compreender a fala é entender o universo no qual aparecemos uns aos outros, e, ainda, perceber o povo que a produz e a sustenta. Isso implica reconhecer que todo código lingual é, na própria estrutura, dialógico – um espaço plural onde múltiplas vozes sociais se confrontam, respondem-se, resistem e se recriam incessantemente. 

Refletir sobre uma conformação linguística é, portanto, realizar um exercício de autonomia. Configura o gesto pelo qual a pessoa procura se libertar das heteronomias impostas, assumindo a responsabilidade de nomear sua mundividência com amparo nas próprias condições históricas. Para tanto, impende compreender o idioma que hoje praticamos, reclama reencontrar sua matriz ancestral e identificar as forças sociais, políticas e violentas que moldaram seu formato corrente. Certas expressões linguageiras vigentes estampam, em larga medida, produtos da violência colonizadora – uma vis imprópria e indecorosa – que alcançou corpos, territórios e culturas, atingindo, torpemente, a própria palavra. 

Apesar desse passado truculento, as línguas que aqui se enraizaram – sobretudo as indígenas – e aquelas trazidas à força pelos nossos nacionais com o subjugo de africanos deixaram marcas indeléveis no vocabulário e em nosso modo de ser. Esses intensivos vestígios não significam somente resquícios, pois expressões vivas de resistência cultural, constitutivos do núcleo mais profundo da formação do “povo novo” brasileiro, resultado da confluência e do conflito entre matrizes civilizatórias distintas. Revelam, ainda, a permanência de uma pluralidade linguística que enriquece a significação e impede a redução da língua a uma perspectiva dominante. 

Nesse sentido, as variantes populares do português brasileiro – muitas vezes classificadas como “erros” pela ideologia normativa – são, na verdade, testemunhos da diversidade linguística e da história plural que nos constituem. Desqualificá-las é participar de um decurso de opressão e apagamento simbólico. Remansa em violar a dignidade dos seres como falantes e pensadores, reduzindo-os de fins a meros meios de adequação a um padrão arbitrário. Nada disso deve ser tomado como sinal de desordem. Ao contrário: constitui a vitalidade persistente de um país que se fez plural desde seus primórdios. As expressões vernaculares, frequentemente invisibilizadas, guardam a memória viva de nossa formação mestiça e afirmam a capacidade humana de resistir à heteronomia para recuperar a própria voz.rrostamos hoje, todavia, uma nova modalidade de colonização, marcada pela expansão global da língua anglo-saxã e de seus signos culturais, que se exprimem sob o disfarce da neutralidade. Neologismos e modismos em pobre inglês chegam até nós com tal espontaneidade aparente que, quando percebemos, já os incorporamos ao cotidiano, sem reflexão; e sob diáfana desnecessidade – seja expresso. Por isso, torna-se necessária uma vigilância crítica: distinguir entre o diálogo autêntico entre culturas e a dominação simbólica mascarada de naturalidade. A adoção irrefletida dessas expressões acrescenta mais um capítulo à dilatada história de tentames para moldar o Brasil segundo interesses externos. 

Reconhecer essa dinâmica é aceitar que todo o vozerio hegemônico peleje para se mostrar como “a” voz universal, apagando as demais e ameaçando a polifonia que caracteriza a vida linguística. Embaixo dessa pressão internacional, observa-se, também, o recrudescimento do desprezo pelos formatos populares do português, como se sua legitimidade dependesse da proximidade com padrões alheios. Sobra, então, exprimida uma colonização interna que reforça desigualdades sociais e simbólicas. Essa universalização – ilegítima justamente porque não nasce de um consenso racional nem respeita a autonomia dos sujeitos – funda-se no poder econômico e cultural, e viola o princípio de que cada pessoa deve ser tratada como fim em si mesma. Nenhuma norma está habilitada a aspirar à universalidade se não respeitar a dignidade de todos os falantes. 

Em mencionadas circunstâncias, faz-se urgente interrogar as palavras que chegam até nós, examinar as intenções que as acompanham, reconhecer a multiplicidade de vozes que nos compõem e desmascarar os preconceitos que hierarquizam falas e reduzem a complexidade de nossa experiência linguística. Precisamos infirmar a dignidade das línguas e variedades que, à extensão temporal, tentaram silenciar – mas não conseguiram, porquanto a emancipação começa quando devolvemos à própria voz a capacidade de estabelecer diálogo com o mundo, sem a ideação de eco, porém como sujeito: nomeando-o com autenticidade, criticidade, historicidade e plena consciência das inúmeras vozes que povoam nossos multíplices jeitos de falar.


CRÔNICA - Bilhete (VM)

 BILHETE AO PROF. DR.
FULANO DE TAL DOS ANZÓIS
(Há Dez Anos)

 

É melhor cairmos nas garras dos abutres do que nas dos lisonjeadores, pois, no primeiro caso, seremos devorados já mortos; no outro, ainda vivos. 

(ANTÍSTENES, Filósofo grego. Atenas, 445 a.C; 365 a.C.).

 


 

No dia 17 de novembro de 2025, fez dez anos que dirigi a comunicação sequente a um professor universitário de uma Capital Nordestina. 


 Fortaleza, 17 de novembro de 2015.

Prof. Dr. Fulano de Tal dos Anzóis,

Pax et bonum.

 

O senhor não me pediu opinião acerca do seu livro, tampouco me conhece, até a julgar pela maneira como se dirigiu a mim, dizendo “Vianney, aqui é o professor doutor F. de T. dos AA., em vez de falar – “Professor Vianney, aqui se dirige o Prof..., ou “Vianney, aqui é o F”... Desculpe, não sei se preferiu SAIR JÁ POR CIMA. 

Modéstia de lado, como não sou, conforme disse Gilberto Freyre a respeito dos críticos, mero “mata-mosquito da ordem gramatical”, mas uma pessoa avançada em idade, afeita a textos acadêmicos e literários há mais de trinta anos, aduzindo o fato de que já vou publicar o vigésimo livro de minha agricultura, felizmente, ouso lhe dizer, reúno um mínimo de aptidão para emitir juízo, tanto acerca de escritos acadêmicos, quanto literários, com razoável poder opinativo. 

Poucas vezes – adianto – muito poucas, divisei em escritores nordestinos tanta capacidade de prender leitores quando o Senhor, nestes originais transitados pelo meu crivo gramatical e joeira estilística, haja vista o alcance raciocinativo, a graça e a beleza expressos elegantemente em suas peças escriturais em língua-prosa, acolitadas pelo estro poético que emoldura a linha particular da crônica, esse gênero bem peculiar aos escritores nacionais, mormente por meio dos periódicos sabatinos e dominicais e, depois, ajuntadas como livro. 

Há, entretanto, um registo por demais antipático e que não aprecio na sua escrita, já manifesto várias vezes comigo, tampouco gostam disto leitores mais aprestados do que eu.

Este configura o fato de não fazer reserva de sua pessoa como personagem de algumas das crônicas, aparecendo sempre, “para Roma e para o Mundo”, como o professor F., doutor, autor de textos científicos, morubixaba de todos os indígenas brasileiros, isto e aquilo, colhudo do pedaço, derradeira Coca-Cola do Saara, numa manifestação de talvez ingênua e descabida presunção, absolutamente desnecessária – decerto sem se dar conta disso, acredito. 

Seus escritos – tenho disso toda a convicção - pelo que de particular excelem em qualidade, mesmo sem sua assinatura, após conhecidos do consulente, serão divisados como seus em quaisquer lugares e em todas as circunstâncias, fazendo jus à divisa buffoniana segundo a qual Le style c’est l’homme même, de sorte que, reste persuadido, é da mais alteada linha literária. 

Por tal razão – e até para que eu experimente o ensejo de lhe dirigir, no futuro livro, comentários airosos, pois desalinhados não costumo proceder a respeito de obra alguma – sugiro disfarçar sua pessoa em tertius protagonista das estórias, pelo que sobrará mais simpático ao público ledor, removendo a redundância expressa na sua literatura de alevantada essência adida à “necessidade” supérflua de aparecer como paredro da humanidade, espelho da inteligência e referência derradeira de pessoa, haja vista o fato de que Jesus Cristo não precisa ser apresentado a Deus Pai, isto é, o Senhor – Professor – aos seus leitores. 

Abração.

Vianney Mesquita.

 

Pediu desculpas e disse que tomaria um café comigo, para conversarmos, quando viesse a Fortaleza. Não fez isso. E nunca mais submeteu escritos. Terá sido levado pela Covid-19?